Uma cirurgia reparadora da ausência do Outro” : observações sobre uma astucia da vida cotidiana
2024

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Claire BRUNET
Cartel franco-brésilien de psychanalyse

Foi no curso de um encontro com Charles Melman que ele – a respeito dos jovens que se balançam pelas ruas com seus fones no ouvido, com a música num contínuo, por assim dizer, me respondeu: “mas, é uma cirurgia reparadora da ausência do Outro!” Minha hipótese era outra: a de um objeto contra fóbico, mas longe das descrições princeps da agora-fobia berlinense, que insistem sobre a escanção do espaço urbano que evoquei, prolongadas pelas análises de Lacan quanto às funções sinaléticas da fobia no pequeno Hans. Ele insistiu:

 

“Nunca mais estamos sozinhos, e ainda por cima, o Outro em vez de ser superegóico, se torna harmônico, fluído, e tão fluído que há uma sutura entre música e o digital na techno. Estamos conectados”.

 

Como compreender essa expressão?

1 – da ausência do Outro

2 – da cirurgia que repara essa ausência, e

3 – de sua transformação de uma figura superegóica em uma harmonia fluída?

 

Eu já me detenho nisto: Melman coloca o espaço como um contínuo análogo ao da música (ele já havia evocado isso, há muito tempo, a propósito dos fluxos e da massa de patins nas ruas de Paris: isso desliza)

 

Mas, sobretudo, longe de reenviar à problemática fálica do pequeno Hans e da fobia em geral, ele decide pensar esse fenômeno a partir do Outro ou melhor de sua ausência, e o fone de ouvido, o patim, seriam modos de fazer com isso: ou sejam, astucias.

 

Entretanto, ele encadeia, na conversa, sobre o consumo do pornô pelos adolescentes, que está nas manchetes dos jornais, dizendo: “Os jovens vão buscar o que nessa obscenidade? Eles buscam aí a emergência de uma dimensão fálica que, aliás, lhes falta: na falta de um referente simbólico resta apenas um substituto real”.

 

Retorno então, à ordem fálica, mas uma ordem fálica no real e não mais simbolizada, efeito da castração. Nos encontramos então, com uma escritura lacaniana de base, como uma matriz elementar onde: isso não é menos ф, mais ф positivado, por assim dizer, e não é Outro, nem mesmo barrado, mas não Outro.

 

Então como entender a estranha expressão de “cirurgia reparadora”? E em que é uma cirurgia? Eu diria que isso nos instala do lado do real e não do simbólico mais uma vez, pois a cirurgia abre os corpos e fabrica cicatrizes.

 

Essa cicatriz seria a possibilidade da barra sobre o Outro? E a cirurgia reparadora, essa operação que faz surgir sua dupla figura? Certamente, não, se olharmos os adjetivos pelos quais Melman qualifica esse Outro surgido dos fones de ouvido: fluído, harmônico.

 

Então, reparadora? O que se trata de reparar?

 

Eu fiz um belo lapso ao propor esse título a Angela: cirurgia reparadora do Outro (no lugar de ausência do Outro). Conforme minha neurose, eu ouvia reparar o Outro (todo um programa). Mas Melman diz: reparar a ausência do Outro.

 

Como a cirurgia reparadora fez após a guerra de 1914: refazer nariz, queixo, etc., lá onde a guerra os tinha arrancado. E navegando na internet encontrei a confirmação de minha intuição (sobre o primeiro site que apareceu):

 

“A cirurgia reparadora ou cirurgia reconstrutora é um tipo de cirurgia que permite reconstruir o corpo quando ele é danificado. Essa técnica da medicina se desenvolveu após a Primeira guerra mundial, durante a qual numerosos soldados foram gravemente feridos ou desfigurados. A cirurgia reparadora pode ser feita após uma doença, um acidente, uma malformação de nascença, desde que a integridade física de uma pessoa é atingida.”

 

Eis alguns atos da medicina reparadora: apagar uma cicatriz, reconstruir a mama após uma mastectomia. Remodelar os seios deformados por uma malformação, refazer a pele após um acidente, refazer um nariz que foi quebrado após um choque, enxertar pele, reparar sequelas de queimaduras, refazer a boca na presença de malformação (no lábio leporino). Tratar orelhas descoladas, suturar a pele sem deixar cicatrizes, tratar a ginecomastia, reconstruir a orelha, colocação de próteses auditivas.

 

Ou seja, Melman faz a hipótese de um “corpo danificado”, mesmo de um trauma (o que é coerente com o conjunto de nossa entrevista na qual, a propósito das crianças contemporâneas, ele reaviva a pertinência do conceito de neurose traumática, colocando essa questão: o que se passa com as crianças quando os pais se separam no lugar de transar?)

 

Ressalto que se confiamos em sua intuição implícita, própria à língua, que a guerra de 14 suscite em Freud não somente uma reativação da questão do trauma, mas também da pulsão de morte.

 

Esse termo desenha um quadro para nós: essas jovens pessoas vagam no mundo com um pano de fundo de trauma e pulsão de morte, mas eles tamponam essas dimensões jogando com o contínuo (que oponho aqui ao descontínuo da cicatriz, da fratura, da diferença antes, depois, etc.)

 

“É a partir dessas duas notas clínicas que trataremos de apreender esses artifícios da vida cotidiana” eu dizia em meu argumento, mas notemos que ao seguir a pista de Melman, esses fenômenos são menos “psicopatologia” no sentido freudiano de uma falha, do que tentativas de reparação de uma falta e que o espaço da vida cotidiana e de suas histórias não tem mais a tessitura do mundo freudiano.

 

Lemos recentemente uma observação de Lacan no Ato psicanalítico: a dois um fenômeno pode ser uma besteira, é necessário três para que se torne engraçado – isso que é a lição principal de O chiste e suas relações com o inconsciente.

 

Minha hipótese aqui é que Melman se confronta ao: “estar sozinho” – a cirurgia reparadora tenta compensar isso.

 

Nessa mesma lição 2 do Ato psicanalítico Lacan contesta o título de psicopatologia da vida cotidiana por fazer valer a ação: pois a ação é significante, e ele insiste: o ato da psicopatologia não coloca o inconsciente – “é exatamente o contrário, ele está aí como atividade muito apagada e (…) para tampar um furo que só está lá quando não se pensa nele, à medida que não nos importamos  com ele, que não está lá onde ele se exprime…” [lição de 22/11/1967]

 

Eis o que me interessa: esse “tampar o furo” e um furo “que está lá apenas se não se pensa nele, na medida em que não nos importamos com ele”. Não é então o adolescente ou o pós-adolescente que se ocupa do furo, é Melman que olha a cena e a interpreta – o fone de ouvido opera perfeitamente: esse furo é insensível e tanto mais insensível que se afoga no contínuo da música, o fluxo.

 

A psicopatologia da vida cotidiana é ação – a de colocar o fone de ouvido e em lacaniano se pode muito bem dizer que pagamos o preço por essa ausência (qu’on “casque[1]”)

 

Retomemos a hipótese de Melman: essa cirurgia reparadora visa fazer surgir o Outro ou suturar a cicatriz de modo que não se o experimente como ausente? Tudo isso é ainda mais engraçado para nós porque se trata do fone de ouvido (d’écouteur), escuta-feliz (écoute-heur) ou escuta-choque, (écoute-heurt )“escutador”, fone de ouvido, que nos impede de ouvir o choque, pois eles funcionam num fluxo contínuo e ao mesmo tempo nos dão apenas isso para ouvir, pois se trata de música techno-beat.

 

Releiamos aqui essa fórmula lacaniana em Posição do inconsciente, nos Escritos, pg. 849: “O efeito de linguagem é a causa introduzida no sujeito. Por esse efeito, ele não é causa dele mesmo (…) Pois sua causa é o significante sem o qual não haveria nenhum sujeito no real. Mas esse sujeito é o que o significante representa e este não pode representar nada senão para outro significante: ao que se reduz, por conseguinte, o sujeito que escuta”.

 

E, sobretudo, o seguinte:

“O sujeito então (…) isso fala dele e é aí que ele se apreende e tão mais forçosamente quanto, antes de – pelo simples fato disso se dirigir a ele – desaparecer como sujeito sob o significante em que se transforma, ele não é absolutamente nada. Mas esse nada se sustenta por seu advento, produzido agora pelo apelo feito no Outro ao segundo significante”.

 

Eu não vou detalhar, destaco apenas uma sequência: que o sujeito que escuta se reduz a um significante (segundo); que o sujeito se sustenta de um nada. Mas que é o apelo do Outro que suscita o advir do sujeito.

 

Melman tinha um dia evocado um pequeno fato de sua vida cotidiana: caminhando ele se deparou duas vezes com pessoas que gritavam ao léu. Ele não imputa isso a nenhuma psicose, mas a isto que o endereçamento ao Outro se tornou nas mídias. Não é o fiel gritando para os deuses. Somos nós gritando para ninguém.

 

Endereçamento ao Outro que, bem entendido, responde a esse apelo do Outro.

 

Cito “Refoulement et déterminisme des nevroses” pg. 127 – estamos em 1989-1990:

“Eu queria lhes contar duas estorinhas que observei durante a semana: a primeira faz parte desses incidentes da vida pública, da vida da rua: minha atenção se voltou para um homem que gritava coisas totalmente articuladas; ele mantinha em voz alta um discurso de modo tal que não era manifestamente, os jatos de palavra  um psicótico. Suas palavras eram articuladas e ao vê-lo pela janela, ele caminhava em companhia de uma mulher, ele falava gritando, mas sem se dirigir a ela. Ela caminhava tranquilamente ao lado dele (…) ele sustentava suas palavras pra quem quisesse ouvir (a propósito de sua separação com essa mulher) (…). achei essa manifestação interessante pois me perguntava a quem ele dizia tudo aquilo”.

 

“No dia seguinte, minha atenção se voltou para uma folha de papel arrancada de um caderno escolar colada sobre a porta de um apartamento onde estava escrito, com lápis de cor com grandes riscos, bem visíveis para aquele que subisse a escada: “Nicolas faz malcriação”. Nicolas sendo bem entendido, a criança da casa e a questão era ainda de saber a quem essa informação, esse grito estava endereçado.”  

 

“Essas duas pequenas histórias podem nos esclarecer sobre o que são as mídias. Podemos pensar que nos dois casos, tanto esse homem quanto os pais exasperados de Nicolas, não sabiam mais a quem se dirigir. Este homem tinha, sem dúvida, esgotado o endereçamento a sua mulher, aos juízes, à família, a seus pais, então, a quem falar?”

(e no caso de Nicolas o papai não metia mais medo, nem o professor ou a professora, prossegue Melman)

 

Quer dizer, “na falta de uma presença no Outro a quem se possa endereçar seu grito, sua queixa, sua reivindicação, seu sofrimento, seu extravasamento…”  Resta um puro olhar – pois se tratava não que isso fosse ouvido, mais visto.

 

Eis ao mesmo tempo talvez a mesma situação, com sequências diferentes e uma variação. Aqui, tem aí um endereçamento e por assim dizer vaga consciência da ausência do Outro. No caso do fone de ouvido, não há mais essa intuição. Aqui há sofrimento, no caso do fone de ouvido, não verdadeiramente, senão sob forma real, fantasmática do retorno dos zumbidos (acouphènes de akouein phaniein), ouvir aparições, Melman insistiu sobre essa etimologia quando evoquei esse distúrbio.

 

Nos dois casos então temos problemas com isso que aparece (ou não) e mesmo com o lugar onde uma aparição pode surgir.

 

Endereçamento ao olhar, não sei se é o caso de meu negocio dos fones de ouvido. Abro a discussão: quer dizer imaginário?

 

Para terminar, retorno à questão colocada por esse ciclo: “o que somos capazes de inventar para nos sustentar como sujeito” na “abrasão da linguagem” como testemunham as histórias aqui relatadas (tanto o grito dirigido ao léu quanto o fone de ouvido que impede de ouvir)?

 

De fato, nos encontros que tive com Melman, sua grande questão era – eu a traduzo com meus próprios termos: qual é então a mensagem que o sujeito recebe do Outro, se o Outro está em pane – ou pior, ausente – ou nem mesmo suposto – pois não é a mesma ausência aqui aquela que realizamos no final do tratamento. Aliás, estar ausente e não existir não são equivalentes.

 

Vocês perguntavam: a subjetividade tem novos parâmetros ou coordenadas?  Aqui se vê bem Melman tentar ver se isso se mantém entre perturbação da ordem fálica e ausência do Outro – noto que ele não se precipita sobre o objeto – que ele considera fenômenos elementares do cotidiano em termos de endereçamento: pra  quem falar e na falta de, por quem se fazer ver.

 

Minha hipótese conclusiva é que essa subjetividade está no cruzar dos caminhos: ou bem ignorar a cicatriz, ser tomado pelo fluxo e fazer massa (a moda – diz Melman em outro lugar- se tornou o substituto da lei) ou então esperar que alguém faça ato  com os significantes que ainda estão na folha de papel e no discurso vociferado: Melman que passa na rua ou na escada, por exemplo.

 

É por isso que disse: astucia. Não são, sem dúvida, resoluções muito sólidas ou duráveis, mas elas permitem se sustentar por um momento.

 

[1] Em francês, casque é o fone de ouvido.