A partir da prática psicanalítica com as psicoses, indico que a expressão “sem fronteiras” se refere à eliminação delas (fronteiras) de forma extrema, causada pelo ódio, na psicose paranoica, no momento do ato criminoso. Significa admitir, portanto, que a concepção de fronteira implica o reconhecimento de um Outro, estranho, desde o qual sou concernido a realizar uma abordagem, uma aproximação, reconhecendo sua referência a um Outro território, uma Outra língua, uma Outra tradição, um Outro corpo que estabelece limites ao meu.
Sendo assim, o ato criminoso na psicose paranoica vai ser produzido por uma junção do significante com a causa de gozo, o que foraclui as condições de reconhecimento da alteridade, condições essas que até então sustentavam uma distância possível entre o sujeito e o Outro. Tal significante vem do Outro sob uma condição invasiva para o sujeito, ameaçando sua própria existência. Nesse momento, é ele, sujeito, e o Outro que disputam o direito à vida. Contudo, não se trata de atribuir a causa desse ato a uma insensatez que habitaria a loucura. Mais do que isso, existem condições que estruturam esse ato, inicialmente sob a forma do delírio de perseguição – que faz constar, de forma imperativa, uma voz e um olhar acusatórios. Trata-se de um “tu és isso” em que a nomeação é substituída pela fixação do sujeito numa condição de dejeto.
Ao que parece, é o que podemos recolher quando as irmãs Papin recebem de suas patroas, madame e mademoiselle Lancelin, uma injúria que as identifica como nada, por não terem passado as roupas que elas, as patroas, esperavam encontrar prontas, o que não pôde se realizar devido a uma falha elétrica. “Vocês são nada”, frase enunciada por Madame Lancelin, que iria preceder um rito atroz, no qual mãe e filha serão assassinadas de uma forma macabra. Contudo, não se trata de supor que o enunciado depreciativo “vocês são nada” tenha sido o responsável isolado pela matança.
Sabe-se que Christine e Lea Papin viviam na casa dos Lancelin como se estivessem num convento, nunca saindo de seu quarto (onde compartilhavam da mesma cama) a não ser para realizar as obrigações domésticas. Jacques Lacan não chegou a incluir o papel decisivo da terceira irmã, Emile, um dos nomes próprios dele, Lacan, na trama das irmãs (cf. La solution du passage à l’acte. François Dupré. Ed Érès). Ela vivia num convento, e foi por se manter encerrada nesse lugar que obteve autorização para sair da casa da mãe, como se sabe, uma delirante grave que exigia que a vida das filhas fosse dedicada a ela, inclusive para sustentá-la com o salário integral que recebiam. Quando Madame Lancelin enuncia de maneira ofensiva “vocês são nada”, ela retira o duplo suporte delas, seja na referência à terceira irmã seja pelo lugar privilegiado que ocupavam para sustentar a vida da mãe. Se elas são nada, tudo que até então as sustentavam cai por terra.
Elas são nada diante de um casal mãe-filha, madame e mademoiselle Lancelin.
Consideremos que as fronteiras mantidas pelas irmãs Papin, na casa dos Lancelin, permitiam que elas cumprissem suas obrigações com respeito às patroas e ao monsieur Lancelin. Elas não interagiam com a família, falando apenas o indispensável. É um tipo de fronteira bastante atípico, já que não implica reconhecimento do Outro em sua condição de circuito simbólico e imaginário, mas sim sob a forma do que vinha como comando para elas. Comando, esse, estruturado pelo enunciado do supereu, qual seja, “cumpre o teu dever”, ou ainda, lembrando Freud em O ego e o id, “Faça”.
É digno de nota que a função delas como empregadas é também a colocação em evidência do colamento da posição subjetiva de cada uma aos ordenamentos pelos quais o Outro se faz presente. Elas são sem fronteiras, porque cada uma dá corpo por inteiro ao caráter tirânico do supereu na psicose paranoica. Nesse sentido, o “sem fronteiras” é causado por um gozo do Outro, em sua consistência sacrificial, como gozo da voz que silencia e faz falar somente Uma voz, numa condição angustiante. A voz é, assim, o nome do objeto pelo qual o Outro goza. Só existe uma voz nesse caso, aquela que é causa da eliminação das fronteiras.
Não somente podemos recolher a condição sem fronteiras pela expressão do ódio assassino na psicose paranoica como cabe, ainda, destacar a construção de Outra fronteira que é efeito desse ato. Christine e Lea Papin serão colocadas em celas separadas. Ao mesmo tempo em que Lea retornará para a casa da mãe, se ocupando de pequenos trabalhos sociais elementares, Christine terminará sua vida internada definitivamente com um quadro delirante. Tal condição não é suficiente para acreditar que todo ato extremo produzido pelo ódio na referência das psicoses cumpra uma função pacificante ou transformadora para um sujeito. O que não deixa de nos interrogar sobre as condições que permitem tais mudanças para um sujeito e sobre outras que o encerram, como no caso de Christine, numa alienação enclausurante.
Pelo exposto até aqui, as fronteiras que cada um de nós mantém não chegam a garantir uma distância que permita uma convivência pacificada. Daí a importância de retomar uma passagem da fala de Charles Melman (cf. Une relation à l’Autre moins barbarie est-elle possible? in Lyon, 2017), quando ele afirma que “… as fronteiras são feitas para distinguir a pessoa do estranho”. Se considerarmos que o estranho que habita cada um de nós é uma parcela de real irrepresentável, podemos deduzir que ele retorna pelo Outro com o qual entro em conflito.
No plano geográfico, por exemplo, sabemos que as fronteiras são, por excelência, o local onde as invasões de território se manifestam. Não faltam exemplos em nossa época, basta lembrarmos das guerras que assistimos proliferar com esse objetivo. Daí que a possibilidade de uma maior eficácia das fronteiras se encontra na dependência de uma Lei que condicione respeito e sanções para os que as transgridam. Em se tratando do território entre as diferentes nações, essa Lei encontra sua efetividade num reconhecimento internacional recíproco entre aqueles que a subscrevem. Frente à inércia de uma solução para interromper as invasões que assistimos no plano mundial, podemos reconhecer que há uma falência das autoridades que, num primeiro momento, assinaram o compromisso de impedi-las. Não foi por acaso, portanto, que Freud, ao concluir um de seus artigos sobre a guerra, tenha recorrido ao adágio latino segundo o qual se queremos a paz, tratemos então de nos preparar para a guerra! Um conjunto de questões pode ser listado nessa referência:
2) Constatamos, a partir das elaborações de Freud sobre o ódio na dinâmica da transferência, que ele faz constar uma polaridade entre transferência positiva e negativa, polaridade desde a qual reconhecemos a alternância entre o amor e o ódio. Contudo, foi o próprio Freud quem indicou a possibilidade do desligamento das pulsões de vida e de morte, gerando uma autonomia da destruição como sinônima de triunfo da pulsão de morte.
Ao retomar as contribuições da obra freudiana acima indicadas, pelo ensinamento de Lacan, reconhecemos não somente a ligação entre amor e ódio como amódio, mas também como hainamoration, ou seja, como sinônimo de uma paixão pelo ódio, uma dedicação apegada a ele. É o que encontramos de forma exacerbada na neurose obsessiva, sempre com a justificativa de manter a razão, como estratégia para se manter aferrado a um não que preserva a qualquer custo, de forma a não ter de ceder ao Outro, evitando de ser tocado e ver sua imagem abalada. Lacan também falou de gozódio, no meu entender uma questão complexa. Isso porque existem, segundo penso, diferentes inflexões desse gozo. Uma é o gozódio na neurose obsessiva, onde o sujeito não cede um objeto demandado pelo Outro, como fezes, por exemplo, e padece tanto de prisão de ventre quanto de avareza. Outra é o gozódio que vemos se manifestar numa transmissão geracional, com os descendentes se empenhando para realizar uma vingança que, não podendo ser cumprida nas gerações anteriores, é transmitida a eles como realização dessa tarefa com a qual se identificam pelo Outro que os constituiu. Não estamos longe de encontrar em Hamlet o caráter modelar dessa transmissão, ainda que não fique restrita aos problemas levantados na peça.
3) Desde cedo vamos encontrar nas elaborações de Lacan sobre o ódio uma abordagem que não se mantém na referência de um par, tal como encontramos na maior parte do tempo em Freud, mas sim numa condição ternária, indicadas pelas três paixões que nos constituem: amor, ódio e ignorância.
A título de experiência, gostaria de propor o rebatimento dessas três paixões nos três anéis do nó borromeano, considerando o objeto a em seu centro. O que significa, enlaçadas as paixões duas a duas, surgirão ao menos três modalidades de gozo das paixões. Por exemplo, se a paixão da ignorância, como sinônima de fazer questão de ignorar a partir da crença no imaginário do idêntico a si mesmo, se superpõe ao ódio em seu estatuto real, enquanto recusa da simbolização, isso reduz o amor ao extremo, em sua condição que promove a divisão e a diferença, próprias ao simbólico. O gozo desse enlaçamento é tanto aquele que causa o racismo quanto o que encontramos na defesa de algumas causas que, em nome de promover o reconhecimento legítimo das chamadas minorias, as fragilizam pela geração de endogamia. Articulando dessa forma, em que a ignorância baseada no idêntico se conecta ao ódio da simbolização, recolhemos um efeito suicida desconhecido por muitos.
Constatamos em tais posições o anúncio de um futuro que é maldi(c)ção, antevisto por Ionesco em sua peça “O rinoceronte”. Lá, ele nos mostra que a cativação pelo idêntico é o que, ao mesmo tempo, elimina nossa humanidade pela destruição da linguagem. Aos poucos, no lugar da fala surgem os zurros dos rinocerontes. Corpos que se fazem escutar somente pelo som que emitem, sem qualquer possibilidade de estabelecer relação. É quando o absurdo de Ionesco se encontra com o de Beckett, em sua peça “Not I”. O auditor que havia sido incluído no roteiro pelo autor irlandês, ao lado da boca sem o restante do corpo, se movimenta somente em quatro variações dos braços, sem qualquer relação com o que a boca protagonista fala. Quando a linguagem perde a condição de estabelecer circuitos, iremos recolher não somente desconexão, mas também corpos que gritam, buscando engolir o mundo à sua volta à busca por reconhecimento.
Por último, lembro que se escuta e fala sobre o ódio por todos os lugares onde andamos. A isso se somam as notícias internacionais que não somente confirmam a presença dele pela destruição de vidas humanas nas guerras. Diferentemente do que muitos pensam, a história define sua importância, em nosso campo de experiência, pelas marcas que os acontecimentos deixam em nossos corpos. Acompanhando tais marcas do final do século XX ao início do XXI, elas reafirmam o triunfo das invasões. O século XXI se inicia com a explosão das torres gêmeas por indivíduos que invadiram o espaço aéreo americano. Invasões, como tantas outras situações vergonhosas que vemos acontecer, devido à força das armas e das alianças espúrias no momento em que vivemos.
O que recolhemos como marca de gozo em tais acontecimentos é a possibilidade de quebrar o discurso e gozar de suas próprias vontades e justificativas sem mediação. A porta do inferno vai se abrindo segundo os acontecimentos de uma época. Em nosso momento, elas se escancararam, seja pelo retorno voraz da extrema direita seja pela presença de um Deus que quer vingança. Doravante, os crentes do sentido vão continuar se empenhando na multiplicação da estupidez, desprezando a subjetivação, a cultura e a crítica. Estamos longe de intuir o que o ódio vai fazer avançar no futuro próximo. Só sabemos de sua presença garantida por um gozo que promove a paixão, tomando os corpos por inteiro, ao mesmo tempo que os silencia da fala por meio das vociferações. Trata-se da expansão da religião do pior, aquela que liga os fiéis pelo sacrifício da particularidade que, anteriormente, os distinguia como humanos. Baratas, rinocerontes e ratos saíram das páginas da Literatura, adotaram o corpo humano e circulam pelas ruas (cf. Entre baratas e rinocerontes, Mauro Mendes Dias, Ed. Iluminuras). Não por acaso o escritor Ian McEwan reescreveu em 2019 o clássico de Kafka, A metamorfose, em 2019, sob o título A barata, no qual a metamorfose triunfou e a barata se tornou Primeiro Ministro sem provocar espanto nem indignação.
Um outro tipo de laço se apresenta como necessário e possível de ser sustentado desde a Psicanálise. Para tanto, não se trata de se comprazer com uma crítica pueril à animalização do humano, mas sim de se dar conta de seu caminho sem retorno e a complexidade das causas e tratamentos possíveis. O que leva a nos interrogarmos sobre a paixão que veio à público em 20/09/2023, em Berlim, na Alemanha, onde mais de 1000 pessoas se reuniram para serem reconhecidas como pertencentes a uma matilha de animais caninos e não mais como humanos. Trata-se de uma nova modalidade de ódio, agora dirigido à espécie humana por seus próprios membros, ou haveria de se reconhecer que quando o gozódio avança pela metamorfose do humano ele não se satisfaz mais somente com a matança dos hereges, mas investe numa direção antes não reconhecida, qual seja, a destruição da matriz da linguagem que nos estrutura. Caso tal construção seja sustentável, uma significação inédita do sem fronteiras será admitida, aquela que visa a destruir a separação entre o animal e o humano.