Sonâmbulos insones: geração digital[1]
Teresa Palazzo Nazar[2]
O gosto pela autonomia se atrofia, a passividade no deleite inunda o nosso tempo. Já se tornou mais difícil enumerar as particularidades de nações e culturas do que seus pontos em comum (Zweig, 2013, p. 215) .
É verdade que contribuições digitais têm trazido uma percepção diferente da que tínhamos a propósito da relação tempo-espaço, isto é, o modo como organizamos a nossa vida, espacializando o tempo. Esta vida, reduzida a um modelo que não considera a qualidade do tempo, mas o estabelece como algo espacial e quantificável, o faz perder a propriedade tão cara à psicanálise: a de caminhar na direção de estabelecer a diferença entre um antes e um depois – sua irreversibilidade.
Se para Newton o tempo é reversível, quer dizer, o antes e o depois são simétricos (o que faz equivaler causa e efeito), Freud concebe o inconsciente como não ligado à reversibilidade do tempo, mesmo tendo forjado seu conceito temporal Nachtraglich, isto é, o só-depois ou o a posteriori. Apoiado na concepção do inconsciente como estrutura, Freud também despreza o tempo como irreversível e se apoia nas articulações espaciais entre seus elementos. Por sua vez, Lacan afirma ser o real o que retorna sempre ao mesmo lugar. Entretanto, dirá que este lugar é solidário, do ponto de vista epistêmico, à concepção da teoria das ondas em relação ao binômio espaço-tempo. A teoria das ondas situa-se em um espaço matemático abstrato, de dimensões infinitas: espaço de configurações.
É verdade que o tempo se relaciona com as experiências apreendidas pelos sentidos, tanto sensorial quanto perceptivamente, no que diz respeito ao tempo descrito numa perspectiva linear. Assim, há uma articulação do presente com o futuro respondendo ao passado, relação em que o antes e o depois – inseparáveis da ideia de espacialidade – está presente nas concepções filosóficas e de alguns setores da produção científica.
Entretanto, a riqueza do campo científico, cujo avanço imenso o século XIX testemunhou, sofreu duras críticas, reconfigurou os aportes teóricos sobretudo nos campos da ciência, da física e da matemática. Este século viveu o auge do entusiasmo em torno de máquinas térmicas (trens a vapor, por exemplo) assim como o século XX viu surgirem as tecnologias digitais.
De início, sua elaboração teórica havia tomado de empréstimo da termodinâmica o conceito de energia. Com isso, Freud se distancia do modelo de Newton, no qual o tempo se desloca no espaço sem perdas. No texto Mais além do princípio do prazer (1920), ele inova e ultrapassa os fundamentos da termodinâmica. Elabora o conceito de Pulsão de Morte, central ao entendimento da compulsão à repetição.
Sua hipótese quanto à Pulsão de Morte e à compulsão à repetição só será retomada pela física quântica em fins do século XX.
É fato indiscutível o avanço que a tecnologia digital trouxe para a humanidade. Hoje, a vida lida com o tempo espacializado, reduzido a um modelo que, por seu lado, está articulado a um espaço totalmente quantificável. É uma condição na qual o tempo perde sua irreversibilidade e se estabelece uma diferença qualitativa entre um antes e um depois.
Vivemos a época de tecnologias digitais cada vez mais sofisticadas e, nelas, o tempo é encurtado; perdeu-se a dimensão de duração, pois tudo é vivido e experimentado num presente. A capacidade perceptiva induz a uma distorção do imaginário e a uma limitação do simbólico, na medida em que estas categorias dependem da experiência psíquica operada numa direção temporal. Talvez seja essa uma das causas de vários sintomas contemporâneos, como a insônia crônica e crises intermitentes de angústia e euforia, bem como a sensação de desamparo e solidão.
Tem-se a presença de inúmeros e variados gadgets, equipamentos eletrônicos para a vida prática (smartphones, tablets, GPS etc.) que trouxeram muitas facilidades. Entretanto, esses maravilhosos instrumentos dotados de inteligência artificial, com seus algoritmos alimentados por dados, escala e poder de processamento, dificultam a inventividade e o prazer em achar soluções inteligentes a partir de enigmas a serem decifrados. Esses enigmas se apresentam a partir da experiência singular de cada indivíduo, experiência esta tecida no tempo descontínuo da constituição subjetiva de cada um.
É nesse sentido que se pode falar da atemporalidade da realidade do inconsciente, na medida em que o sujeito cria seu tempo ao mesmo tempo em que é por ele constituído. Trata-se de um tempo real moebiano, não antecipável, que subverte o conceito de uma memória cumulativa, posto que lida com um plano virtual/atual: ele só se atualiza ao recriar o sentido do passado, irreversível porque sempre novo, a cada vez. Como poderia a psicanálise lidar com o novo discurso científico, empenhado na ideia de tudo regularizar e submeter a uma formatação de vida em padrões preestabelecidos?
Se nos reportarmos aos grandes pensadores do passado – por exemplo, Descartes –, veremos que eles tinham a aspiração de se tornarem senhores “da natureza”. Entretanto, somente no fim do século XIX, com a Revolução Industrial e o começo do século XX, teremos o avanço da ciência numa velocidade assustadoramente rápida e coincidindo com o nascimento da psicanálise.
Talvez se pudermos manter os dois principais postulados freudianos, bem como o que deles foi ampliado por Lacan, possamos sustentar o vigor de nossa práxis.
Para os que possam estar curiosos sobre esses postulados, cito-os aqui, sendo o primeiro deles a arte do deciframento. Ou seja, se algo não vai bem, são as formações do inconsciente que oferecem a possibilidade de escoar a angústia e, nesse sentido, o deciframento regulado pela lei de significante (ordem decifrável) permite ao sujeito sair de um adormecimento em relação ao que lhe causa sofrimento.
O outro postulado freudiano é a ética do desejo. Se Freud ligou a psicanálise à ciência por um lado, por outro lado não tinha nenhuma crença em um determinismo subjetivo. Para ele, cabia ao psicanalisando a responsabilidade por seu sintoma. O que implica dizer que só esse caminho – o de tomar para si a razão de seu sofrimento – pode levar um sujeito a decifrar seu sintoma, ressignificando sua posição de sujeito frente ao desejo.
Lacan ampliou esses dois postulados freudianos. Sua concepção de liberdade, expressa em “Kant com Sade” (1998a), mas também nos Seminários III e XXIII, oferece uma chave para entender que a loucura humana não está predeterminada no orgânico, enquistada em disfunções cerebrais.
O segundo postulado, fundamental para Lacan, é o efeito-sujeito, lembrado por Colette Soler em O inconsciente reinventado (2012). Tudo recai sobre a linguagem, ou seja, sobre o traumatismo sexual e o traumatismo do discurso do Outro. Juntos, eles fazem com que o sujeito se ligue ao ponto de injunção que produz o “efeito-sujeito”.
Será que uma máquina poderia dar lugar a essa presença que é o sujeito do inconsciente, autor de pensamentos, mas que pensa sem saber que pensa? Uma presença que, falando, sem saber nomeia-se, mas sem saber com que nome? Presença inominada porque inominável em função de um defeito estrutural do significante, introduzido pelo recalcamento originário, é a incógnita radical do ser. Uma presença anônima que o psicanalisando descobre na origem de sua palavra quando para de falar em nome do patronímico e começa a dizer “de si mesmo”. Pode uma máquina reproduzir tal sujeito?
Essas questões sobre os efeitos do uso excessivo das máquinas de Inteligência Artificial interrogam não apenas os psicanalistas. Na área educacional, países avançados como a Suécia desistiram da educação 100% digital; estão reinvestindo milhões de euros para que retomem o uso de livros impressos. Deram-se conta de que os livros impressos e o uso da escrita cursiva são fundamentais para o desenvolvimento psicomotor e o aprendizado, além de influenciar na capacidade de articulação do pensamento lógico e do desenvolvimento da criatividade.
Os resultados dos exames internacionais que medem as habilidades de leitura e compreensão de textos (PIRLS), de 2021, em alunos de quarto ano do Ensino Fundamental (9 a 10 anos) mostraram uma queda expressiva no desempenho escolar e das habilidades de lidar com situações emocionais causadas pelo fracasso de expectativas.
A Universidade de Harvard, em pesquisa de 2021, mostrou que uso exagerado de tecnologia causa prejuízos na comunicação, diversos problemas do sono e atraso no desenvolvimento cognitivo.
A ministra sueca Edholm corroborou a afirmação de seus colegas do Ministério da Educação, os quais constataram as dificuldades para os familiares acompanharem o ensino feito nas escolas de seus filhos, ou de ajudá-los nas lições de casa quando o material é 100% digital. Para ela, a tendência dos estudantes é a de “passar os olhos” ao invés de mergulhar na pesquisa e deciframento dos enigmas surgidos no processo de aprendizado.
Não se trata de demonizar o uso de aparelhos tecnológicos nas escolas e em casa, mas de se ter clareza de quando e como lançar mão dessas ferramentas e de saber utilizá-las para que a criança e/ou adolescente possa elaborar, interpretar e produzir seu discurso a partir do tempo lógico inconsciente, reverberando na capacidade intelectiva do aprendizado.
Como diz Dorothy Sayers (2023, p. 34):
Educar é conduzir o estudante para fora de seu quarto, de sua casa, de seu bairro, de seu país: educar é torná-lo capaz de participar de toda a cultura, é familiarizá-lo com tudo de mais profundo e rico que há milênios nós temos criado – para que ele possa viver, em plenitude, a experiência humana em todos os graus.
Eu diria que a psicanálise é uma dessas ferramentas para a educação sentimental, na medida em que possibilita que a pessoa saia do estado de sonâmbulo insone para a vida compartilhada.
Referências e obras consultadas
FREUD, Sigmund. “Mais além do princípio do prazer”. Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969.
_______________. “Projeto para uma psicologia científica”. In: Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969.
_______________. “A interpretação dos sonhos”. In: Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 3: as psicoses. Versão brasileira de Aluisio Meneses. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
_______________. “A ciência e a verdade”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998 (a), p. 869-892.
_______________. “Kant com Sade”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998 (b), p. 776-803.
_______________. O Seminário, livro 23: o sinthoma. Tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
SAYERS, Dorothy. As ferramentas perdidas do aprendizado. Campinas: Kírion, 2023.
SOLER, Colette. Lacan, o inconsciente reinventado. Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2012.
ZWEIG, Stefan. Mundo insone. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
[1] Texto apresentado nas “III Jornadas de Pesquisa em Psicanálise: Efeitos subjetivos da era digital”. Faculdade de Psicologia, Udelar, Montevidéu, 17 e 18 de maio de 2024.
[2] Psicanalista Membro da Escola Lacaniana de Psicanálise do Rio de Janeiro – ELP-RJ.