O falo e a fala
13 mai 2006

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VICTORA GOMES Ligia
International

 

Falo/fala [Phallus/parole]
Falasser [parlêtre/être le phallus]
Eu, falo [je parle/ moi, le phallus]

A língua portuguesa permite uma feliz associação fonética entre os termos falo e fala, impossível em outras línguas, mesmo latinas, e que nos possibilita compreender melhor a extensão do conceito de falo em psicanálise.

Lacan faria chover, para cima, com isso! Porém, penso que essa possibilidade não foi ainda explorada em profundidade. Apresento algumas idéias, como contribuição a este estudo.

Considerando a cadeia borromeana achatada no plano – onde localizar falo e fala?

Pode-se pensar o campo fálico na abertura do aro do Real, de forma a abranger a região fronteiriça do objeto a com o sentido, e do gozo fálico (Gφ) com o Simbólico. Com esta abertura, o Real inflaria, invadindo, por assim dizer, o Simbólico, e delimitando neste o campo do sintoma. Da mesma forma que o gozo fálico, o falo ex-siste ao gozo do Outro. Porém, diferente do gozo que leva seu nome, cujo espaço entre Real e Simbólico garante a qualidade fora-do-corpo (fora do campo do Imaginário), o falo inicia seu campo na encruzilhada entre corpo (I), objeto do desejo (a), gozo do Outro (GO) e sentido. [Fig. I](LACAN, A terceira)

Onde estaria localizada a fala neste esquema? As possibilidades são várias. Uma delas Lacan aponta, na conferência A terceira, conjugando fala com representação, no campo do Pré-consciente. Outra possibilidade, no meu entender, considerando a fala enquanto linguagem, seria localizá-la no campo do sentido, entre Simbólico e Imaginário. Porém, se esta hipótese fosse aceita, como ficaria o lugar do discurso delirante, ou da linguagem dos sonhos, onde o que mais vigora é o sem-sentido? Para contemplar esta « fala louca », que vem do Inconsciente, uma terceira possibilidade seria localizá-la fora do campo do sentido, escorregando pela linha do Simbólico em direção ao Real, nas fronteiras do gozo fálico.

Uma quarta possibilidade, se pensarmos na fala como um revestimento, uma forma de câncer que o ser humano é portador » (Le sinthome, p. 113) – não poderíamos considerá-la como um sintoma do sujeito, ou melhor dito, do falasser? Neste caso, sua melhor locação na cadeia borromeana RSI, não seria no próprio lugar do sintoma?

O falo como objeto, significante, gozo, função, nó…

Ao longo da obra de Lacan, a abordagem do falo vai evoluindo, deslizando por topologias nem sempre muito claras.

No seminário As psicoses, a partir da exigência da mãe de prover-se de um falo imaginário, estabelecem-se os primeiros vínculos afetivos entre mãe e bebê. « Não há nenhuma circulação, a única função do pai no trio é representar o portador, o que possui o falo. » (Aula 25, 04/07/56) Também em A relação de objeto, o falo ocupa o terceiro vértice do tripé, junto com mãe e filho. Até aqui, no meu entender, ele representa um só papel, o lugar do pai simbólico. (Por exemplo, ver o esquema do fetichismo, Aula 3, 05/12/56)

No Seminário As formações do inconsciente, o falo aparece como desejo do Outro e vem tomar o lugar primitivo da relação da palavra com a mãe. É aqui que ele vem jogar com sua função de « representante ». (Aula 18, 09/04/58)
Quando Lacan apresenta o objeto a, no Seminário O desejo e sua interpretação, o falo passa a ocupar o lugar de objeto do desejo. Assim como o seio da mãe, os excrementos, a voz, o olhar, enfim, os objetos que se desprendem do corpo imaginário, o falo confunde-se com o objeto a.

Ao longo de todo este Seminário (O desejo…), aparecem as expressões falo da mãe, falo do Outro, falo do sujeito, falo de Ofélia, de Claudius, do homem, da mulher, do bebê… onde falo parece ser usado como sinônimo de objeto do desejo: é aquilo que escapa sempre, às vezes caindo para o campo do Real (« falo real »). Porém, no final deste Seminário, Lacan faz um esclarecimento: … « é o objeto que sustenta o sujeito nesta posição privilegiada que é levado a ocupar em determinadas situações, que é a de ser, propriamente, aquilo que ele não é: o falo. »… « Nós chamamos a isto de (-φ), quer dizer, isso que Freud assinalou como sendo o essencial da marca, no homem, de sua relação com o Logos, isto é, à castração, aqui efetivamente assumida sobre o plano imaginário. » (Aula 19, 29/04/59)

Em A significação do falo, o falo aparece mais claramente como um significante, mais que isso: o significante organizador dos significantes. « Na doutrina freudiana, o falo não é nem uma fantasia (no sentido de um efeito imaginário), nem um objeto parcial (interno, bom, mau), nem tampouco o órgão real, pênis ou clitóris. » Para os que ainda pensavam no falo como um sinônimo do órgão masculino, eis uma explicação clara e concisa tirada do discurso de Lacan. (LACAN, 1958, pág. 700)

No Seminário A identificação, Lacan avança com a topologia, esclarecendo o lugar do falo como operador do corte que divide (barra) o sujeito, e atestando o nascimento do sujeito do inconsciente. É também do falo a função de colocar o objeto a dentro do buraco do cross-cap, e é o falo que cai junto com o objeto, quando este se destaca no corte do fantasma ou fantasia [fantasme]. Aqui, o falo é ao mesmo tempo significante, função e objeto.

O falo como função de fonação

Muitos anos, e muitos seminários depois – já que não temos aqui tempo nem espaço para investigar cada um deles, daremos um « pulo » avançando 12 anos… – em O sinthoma, fica clara uma nova dimensão do falo, como função de fonação: « voltando ao meu Φ, este meu fi maiúsculo, que pode muito bem ser a primeira letra da fantasia [fantasme], esta letra situa as relações do que eu chamarei de uma função de fonação. Eis aqui a essência do Φ, contrariamente ao que se acredita. Uma função de fonação que se pensa ser substitutiva do macho, dito homem, como tal ». (Aula de 16/03/76)

O Inconsciente supõe sempre um saber – saber falado, já que se organiza como uma linguagem. « Ele é inteiramente reduzido a um saber. » (Aula de 13/04/76) Por isso ele pode, e precisa, ser interpretado. Essa é uma maneira de se compreender a função do falo na psicanálise: ele organiza as relações entre os significantes e faz surgir, nos intervalos entre eles, o sujeito – sujeito da linguagem.

Quando o analisando relata seu sintoma ao analista, pede a ele que dê a isso um sentido. O analista, ao não responder a esta sua demanda, aponta para uma falta em si próprio, colocado pelo paciente no lugar do Outro. Aqui, a relação do analisando com o analista é homeomorfa à relação bebê/mãe: assim como identificar-se com a falta da mãe (ou com o falo da mãe, como dizia Lacan no seminário O desejo…) representou a possibilidade para o sujeito, de inscrever-se como falasser, da mesma forma tentar preencher esta suposta falha do analista (campo do Outro), dá ao falasser a condição de ser sexuado/ser castrado. O falo está presente nesta relação, analisando/analista, enquanto fala: a interpretação como único ato analítico possível, é o corte do significante que faz surgir o sujeito do inconsciente.

O falo/fala como função de fonação, é quem tenta promover alguma relação entre elementos de diferentes naturezas, tais como sujeito, objeto e Outro, ou entre o corpo, a vida e a morte, agindo, então, como elo entre as três dimensões do ser humano – Imaginário Real e Simbólico.

O falo como sintoma

Apresento, para concluir, um exemplo de como o falo/fala vem funcionar, na transferência, na análise de uma criança que possui um vocabulário mínimo (caso de minha supervisionanda Verónica Perez).

Trata-se de um menino de três anos, institucionalizado desde um ano de idade, órfão de mãe, pai desconhecido. Portador do vírus HIV, já passou por diversas internações hospitalares e toma medicação anti-retroviral.

Este menino, que chamaremos de Alex, quase não fala, apresenta afeto deprimido, e tem chorado muito desde a derrubada de grandes árvores do páteo da clínica. Na sessão, derruba um livro que estava sobre a mesa.

Alex: « Caiiiu! » Derruba outros objetos, e repete, com a expressão mais triste do mundo: – « Caiiiu! Todo mundo caiu! »

Analista: « Alex, o que tu queres me contar? » Deita-se e coloca o livro sobre o pênis, e o derruba em direção às pernas:

Alex: « Caiiiu! » Repete este gesto muitas vezes.

Analista: « Como as árvores, que caíram? » Pega um papel e um lápis, faz um risco vertical. « O que é isso? »

Alex: « Tu. »

Analista: « Esta sou eu? » Alex faz outro risco. Faz vários riscos paralelos, depois joga o papel no chão, irritado.

Alex: « Tooodo mundo foi embora! »

No meu entendimento, assistimos aqui a uma passagem que ilustra o ingresso na fase fálica e o acesso à castração simbólica. No caso de Alex, esta passagem se complica com outros fatores da sua história, como a morte da mãe, o abandono e a Aids.

Na sessão descrita acima, ao identificar-se com as árvores que foram cortadas – corpos que caem e que morrem – há uma condensação e um deslocamento. « Caiiiu » também pode estar expressando a falta da mãe, nos dois sentidos: desejo pela mãe, e desejo do desejo da mãe. O temor à castração está im/explícito, representado pelo livro que cai sobre seu corpo.

Com poucos significantes – é impressionante, como com tão poucas palavras uma criança possa expressar tão bem seus sentimentos – o sujeito fez-se representar, na transferência.

Fig.II

Podemos deduzir, por trás do véu do discurso simples de Alex, o caminho traçado pelos significantes (caiu – foi embora – morreu – Tu – todo-mundo), e interpretar seu desejo inconsciente. Acompanhando seu trajeto no nó aplanado, partindo do ponto de interseção entre corpo, Gozo do Outro, desejo e sentido, e « descendo » pela fronteira do gozo fálico, no campo próprio do sintoma.
É no escorregador dos significantes que o desejo desliza, para fazer sintoma.
A demanda de significação dirigida ao analista, por meio da fala do analisante, é respondida não com a injunção de um sentido, mas com uma pergunta, que tem valor de pontuação. Surge, então, um outro lugar – o de sujeito do desejo – efeito propriamente do ato analítico e da direção do tratamento, cujo nascimento a topologia testemunha e dá a estrutura.

BIBLIOGRAFIA

LACAN, J.

  • A significação do falo (1958). In: ESCRITOS. Jorge Zahar Ed. RJ, 1998.
  • A terceira (1974). In: Cadernos Lacan n°II. Publicação interna da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Porto Alegre, 2002.
  • As psicoses. Seminário 1955/56. Jorge Zahar Ed. RJ, 1985.
  • A relação de objeto e as estruturas freudianas. Seminário 1956/57. Publicação interna da APPOA. Porto Alegre, 1992.
  • Les formations de l’inconscient. Seminário 1957/58. Publicação interna da AFI. Paris.
  • O desejo e sua interpretação. Seminário 1958/59. Publicação interna da APPOA. Porto Alegre, 2002.
  • L’identification. Seminário 1961/62. Publicação interna da AFI. Paris.
  • RSI. Seminário 1974/75. Publicação interna da AFI. Paris.
  • Le Sinthome. Seminário 1975/76. Publicação interna da AFI. Paris, 1991.

VICTORA, L.G. Se é possível escrevê-lo. In: Correio da APPOA, set. 2000.