Eu queria dizer do quanto me sinto honrada com essa oportunidade de interlocução e pela presença de vocês aqui. A minha fala aqui não decorre de um trabalho já pronto, desenvolvido anteriormente, mas de questões que me habitam e que vieram ao encontro do convite de Angela Ferretto, em nome do Cartel franco-brasileiro de psicanálise, para uma conferência nesta noite. São questões que se fazem presentes também para o cartel, concernentes ao termo “fantasma” e a sua tradução para a língua portuguesa e suas consequências.[1]
“Cette ‘difficulté’ de traduction qui fait appel dans La langue à deux imaginaires different (reverie d’un côté, revenant de l’autre) ne peut-elle pas nous introduire à questions cruciales contemporaines sur ce que nous appelons fantasme?”[2]
Inicio então por essa indagação, mobilizada também pela conotação que perpassa em alguns trabalhos e articulações sobre esse tema, que apontam para apreensões diversas do conceito, o que poderia, portanto, implicar uma diversidade de nuanças implícitas na tradução, que sugerem uma compreensão outra… Isso me deu a possibilidade de refletir com vocês sobre o assunto.
Vale salientar que inúmeros colegas no Brasil escreveram sobre essa questão, tecendo considerações e justificando sua opção de tradução. Aqui em Paris cabe destacar, em particular, o empenho do Cartel franco-brésilien de psychanalyse, em particular através da pesquisa e argumentação de Ângela Ferretto, que na busca de melhor fundamentar a tradução de determinados termos tem retomado vários tradutores.
É importante destacarmos que na época que iniciamos nas traduções, quando começamos a investigar esse assunto, o termo fantasma (em português) já estava dicionarizado, o que nos levava a crer que outros já tinha refletido bastante sobre isso e que a conclusão a que chegaram seria pertinente.
Vamos então iniciar por uma retomada do conceito, em seguida faremos um breve histórico, e, finalmente veremos algumas conseqüências clínicas.
Voltando então à origem, o termo Phantasie, em alemão, é traduzido [em dicionário acadêmico de língua alemã para o idioma português] por: fantasia, imaginação, capricho, desejo. Quanto ao verbo phantasieren – significa fantasiar, improvisar, bem como desvairar, delirar. Em Freud o termo é utilizado no sentido de : representação, de cenário imaginário, consciente (devaneio), pré-consciente ou inconsciente, que implica um ou vários personagens, que coloca em cena um desejo, de forma mais ou menos disfarçada. A Phantasie seria portanto efeito do desejo arcaico inconsciente, constituindo a matriz dos desejo atuais, conscientes e inconscientes.
Passando para o francês, o termo Phantasie [de Freud] é correntemente e corretamente traduzido por fantasme. Fantasme, conforme o Petit Robert, tem o sentido de: idéia, imaginação sugerida pelo inconsciente, e também o significado de sonho. O verbo fantasmar quer dizer: deixar-se levar por fantasias, tomar seus desejos por realidade; sonhar. Phantasie, traduzido por sua escala em Paris para fantasme, vai ser bastante enfocado por Lacan em sua obra, desde o início de seus seminários, e com mais freqüência nos anos de 66, 67, ano do seminário A Lógica do fantasma.
No Brasil, o termo freudiano Phantasie é traduzido por fantasia, sendo encontrado ao longo de toda a obra de Freud. Em contrapartida, o termo fantasma – que corresponde a Phantom em alemão, fantôme em francês – vai ser utilizado por Freud poucas vezes, tendo sentido completamente diferente. Neste predomina a idéia de espectro ou de espírito de pessoa falecida, sendo referidos ‘a crença ou não em fantasmas’, ‘o medo de fantasmas’, ‘almas e espíritos’, ‘casa mal assombrada’, sendo encontrado principalmente no texto Das Unheimlich.
Vamos observar que para destacar a operação lógica do fantasma (da Phantasie) Lacan recorre em particular ao texto freudiano Bate-se numa criança, onde ele destaca a importância do segundo tempo como momento chave de constituição… Ao Das Unheimlich ele recorre para trabalhar a angústia, a inquietante estranheza. É importante salientar que é a partir da teorização de Lacan que o termo fantasma é introduzido no Brasil, pretendendo-se forjar um sentido outro. A partir de então iniciou-se uma duplicidade na tradução do termo Phantasie. Achamos importante seguir as datas das publicações para verificarmos a origem desse problema.
Em 1967 foi publicado na França o Vocabulário de Psicanálise, de J. Laplanche e J.-B. Pontalis. Este Vocabulário teve sua publicação em português, no Brasil, em 1970. Vale observarmos que era praticamente o primeiro Vocabulário de Psicanálise em língua portuguesa em circulação entre nós. É realmente intrigante constatarmos que na tradução para o português temos um verbete que diz: fantasia ou fantasma. [ver como está em francês] Considerando que fantasma em sua origem, tem [ou tinha] um sentido bem outro em português, será que poderíamos identificar aí o que seria um deslize primeiro, iniciando os atropelos referentes a esse termo por essa escala em Paris? Cremos que esse termo não pagou a tarifa alfandegária, nem o ICM, mas mesmo assim toca a transitar país afora. Em seguida temos a Edição resumida dos Escritos, com alguns textos de Lacan, da Editora Perspectiva. Nesta edição as revisoras colocam uma nota explicativa onde esclarecem as razões da opção pela tradução do termo fantasme por phantasia, utilizado com ph, procurando manter o arcaísmo do termo francês.[3]
Estamos, portanto, tentando seguir a trilha dessa importação, buscando verificar de onde surgiu essa história de fantasma. Nessa breve retomada da história, não das falas, mas dos escritos – verba volent, scripta manent – temos que contar com uma certa escassez das publicações lacanianas no Brasil. Na década de 70 foram poucas as produções. Tivemos duas publicações em 77, sobre a teorização lacaniana, traduzidas para o português [livretos ditos ‘para compreender Lacan”][4] uma utilizando o termo fantasia, a outra recorrendo a fantasma. Ainda em 1977 Serge Leclaire, em seu texto “O ouvido com que convém ouvir” [5], faz referência à Journée sur le fantasme, de 21 outubro de 62, onde o termo é traduzido por fantasia. Em 79 é publicado em português o primeiro seminário de Lacan – Os Escritos técnicos de Freud, pela Ed. Zahar, onde é utilizado também o termo fantasia.[6] Talvez coubesse um levantamento mais minucioso sobre esse período, mas não seria esse o nosso objetivo principal aqui. Assim, a partir da década de 70 vamos seguir então com publicações – em sua maioria traduções de obras francesas ou de textos argentinos – cuja tradução oscila, ora fantasia ora fantasma. [Parece-nos que nesse momento já não se trata da tradução do termo freudiano Phantasie, e sim de fantasme, termo lacaniano]
No início da década de 80, Jorge Forbes (1984) apresenta texto o que será publicado posteriormente, Pegada Clínica, onde destaca a travessia do fantasma. Em seguida temos o livro de Contardo Caligaris, Hipótese sobre o fantasma na clínica psicanalítica, que havia sido publicado na França no ano anterior (1983), e que chega ao Brasil em 1986, com o título “Hipótese sobre o fantasma na clínica psicanalítica”. Trata-se aí do primeiro livro, com ampla aceitação, publicado pela Artes Médicas, cuja tradução para fantasma é utilizada em seu título, o que vai consagrando o termo enquanto uma terminologia lacaniana, ou lacanês. Teremos em seguida o livro de Roberto Harari: “Fantasma: fim de análise”?
Bem, sabemos que Lacan teve sua forma peculiar de lidar com o seu idioma. Como destaca para nós o cartel de tradução… “Lacan forçou a língua francesa, subverteu expressões, criou neologismos semânticos e lexicais, propôs ele próprio traduções nada ortodoxas, forçou a ortografia e a sintaxe.” Entretanto ficamos com a indagação: isso justificaria que se tentasse forçar a língua, com a tradução de fantasme por fantasma, almejando criar um sentido, uma acepção nova?
Refletindo sobre o termo Phantasie, et Phantôm em Freud, teríamos:
Em decorrência de todos esses fatos vamos ter então duas correntes: uma, a dos que adotam o termo fantasia, a outra a dos que adotam o termo fantasma, cada uma justificando seus pontos de vista e as razões para a sua opção. Aqueles que mantêm o termo fantasia encontram sua justificativa na tradução interlingual[7], ou seja, “na reformulação de uma mensagem num idioma diferente daquele em que foi concebida”, buscando para isso a equivalência da palavra no sentido correspondente na língua de chegada. É nesse sentido que Marilene Carone defende a utilização do termo fantasia, e critica a opção pelo termo fantasma, o que ela considera uma apropriação automática e irrefletida, cuja adesão chegaria às raias da violência lingüística. Seguindo sua trilha, vamos verificar que Daniel Lagache[8] havia proposto que o termo freudiano, no francês, fosse traduzido por fantaisie, o que não foi aceito por Pontalis uma vez que este considera que a consciência lingüística da época não poderia deixar de lado os matizes de capricho e de falta de seriedade implícitos nessa palavra. Não obstante, podemos constatar que, na tradução para o português o termo não padece dos mesmos males que fantaisie em francês, sendo fantasia o correspondente perfeito da palavra alemã.[9] Isso é retomado por Marcus do Rio Teixeira, que critica veementemente o uso do termo fantasma.[10]
Aqueles que defendem a tradução de fantasme por fantasma justificavam-no inicialmente alegando que nas acepções pós-freudianas, o termo fantasia atinha-se à idéia de imaginação e devaneio, sendo importante portanto fazer uma diferenciação significativa face ao termo kleiniano. Buscaram então criar um significante, fantasma, que pudesse fornecer uma possibilidade de deslizamento mais rico que o termo fantasia, já tão consagrado nos meios psi como no senso comum. Por outro lado, visavam também a recuperar a tradição freudiana de utilizar palavras do vocabulário popular para que elas expressassem sua força enunciativa, participando da cultura que a originara (coisa que o vocabulário anglo-saxão técnico procurou eliminar?). Forjaram então o termo fantasma buscando retirar-lhe sua acepção mais comum, que indica a idéia de assombração e de visão apavorante, a qual não estaria de acordo com o sentido do termo freudiano.
Observe-se ainda que, em espanhol é também traduzido por fantasma, o que pesa sobremaneira para os psicanalistas no Brasil, devido ao movimento psicanalítico da Bacia do Prata, bem como pelo movimento lacanoamericano, cabendo ainda enfatizar a importância da travessia do fantasma e do livro de Roberto Harari, amplamente divulgado no Brasil.
Podemos então constatar que essa duplicidade de tradução já vem de longas datas. Quando a nossa geração entrou nessa dança buscando trazer o ensino de Lacan ao nosso idioma, essa era a música que estava tocando. De qualquer forma, é importante observarmos que essas duas traduções fazem apelo a dois imaginários diferentes. Essa oscilação na tradução pode também ser verificada pelas opções das Editoras[11]
Marilene Carone considera incompreensível e injustificável que os analistas brasileiros assumam a opção pelo termo fantasma, desconhecendo as características do nosso idioma. Vale nos questionarmos sobre as razões para tal escolha. Ricardo Goldenberg considera como um enamoramento pelos mestres estrangeiros.[12]
E deslizando pelo significante estrangeiro, dos mestres à sua origem, da pátria ao que lhe faz limite, fomos convocados a refletir sobre o que se passava no Brasil nessa época, abrindo aqui um parêntese, e pegando carona na história, deixando-nos levar por nossas recordações. Como nos diz JJ Tysler: ‘o imaginário social tem efeitos e é preciso ver até onde e como o inconsciente se agarra ao imaginário do momento’[13]
O Imaginário social e a questão fantasmática:
Vamos nos dar conta de que a época em que a questão dessa tradução ocorre é exatamente contemporânea ao período do regime militar no Brasil. Período que se estendeu por 21 anos, indo de 1964 a 1985, iniciando-se por um golpe de Estado – qualificado pela direita de “revolução”– o qual instituiu uma ditadura militar. Este regime usava como argumento para justificar as ações arbitrárias e violentas, a idéia amplamente divulgada de que a intervenção militar visava a impedir a implantação de um regime comunista no Brasil.
No início do regime militar as ruas eram dominadas pelas greves dos operários, pelos movimentos estudantis, pelas ligas camponesas. Organizações essas infiltradas por membros da esquerda, que fomentavam a insatisfação e as reivindicações. As liberdades individuais foram suprimidas e a Nação foi entrando definitivamente em um processo de radicalização entre os militares e a oposição, o que gerou o gradual recrudescimento do regime, até culminar, em 1968, com o AI-5, quando os militares passaram a ter o direito de decretar o recesso do Congresso, das Assembléias Legislativas e das Câmaras Municipais a qualquer momento.
A censura dos meios de comunicação, da expressão intelectual e da expressão artística era acentuada. Foi retirada toda a estabilidade e independência do Poder Judiciário, cabendo ao Executivo resolver e julgar sobre qualquer questão. Assim, a partir do AI-5 e em sua vigência, a cassação dos direitos políticos podia ser decretada com extrema rapidez e sem burocracia, sendo eliminado o direito de defesa ampla aos acusados. Os suspeitos podiam ter também sua prisão decretada rapidamente, sem necessidade de ordem judicial. Os direitos políticos do cidadão comum foram cancelados e os direitos individuais subvertidos ou eliminados pela instituição do crime de desacato à autoridade. Desse modo, o crime político, crime de subversão, o enquadramento de qualquer cidadão na Lei de Segurança Nacional, sua expulsão do Brasil e a constante vigilância – por vezes ostensiva – de seus familiares, bem como a indisponibilidade dos seus bens, estavam então institucionalizados e eram legais.
Músicas, peças teatrais, filmes e livros eram censurados e nenhuma notícia que criticasse o governo ou que revelasse suas práticas era veiculada. Por outro lado, era posta em prática uma maciça propaganda institucional visando à elevação do moral da população, com slogans amplamente divulgados a todo instante em todos os meios de comunicação. Músicas de apelo cívico eram divulgadas diariamente. E dessa forma a população era ou massificada pelos meios de comunicação, ou amordaçada pela censura. Em outras palavras, época que se poderia resumir com o slogan: “é proibido pensar!”
Quando a crise econômica se alastrou e o poder aquisitivo decaiu, apoucando o sortimento à mesa da classe média, o descontentamento e a insatisfação foi geral, alimentando uma crise silenciosa onde todos, na surdina, reclamavam do governo e de suas atitudes.
Aqueles que pensavam ou que contestavam eram expulsos do Brasil e passavam a viver no exterior, no exílio. Era do estrangeiro, desses lugares além da fronteira que os acolhiam, que eles mandavam seus recados ao povo, que falavam de suas queixas, de seu sofrimento ou de sua saudade. E a onda de temor e tristeza que compunha o imaginário social insistia perpassada nos lutos e arrastando as perdas, fazendo flamejar a parte fantasmática de cada um.[14] Então, tudo isso acrescido às questões e razões da escolha da tradução, indagamos: será que nessa época, para os brasileiros, era mais viável falar-se em fantasmas do que em fantasias?
O estrangeiro e a alteridade
Em vista disso, retomando o dito enamoramento citado por Ricardo Goldenberg indagamos: seria este o resquício ainda de um país colonizado, que busca o Um no amor por seus mestres de antanho, ou decorre do fato de que era nesse exterior que se encontravam também nossos mestres? Ou será que poderíamos dizer ainda que nessa época um imaginário fantasmático imperava, pairava sobre nossas cabeças e que seria portanto da coincidência do peso da palavra – daquele sentido que não cai – com esse imaginário social que se tratava? Não seria mais propriamente fruto de um imaginário mais fantasmático que fantasístico?
De qualquer modo, fantasme e fantaisie não contemplam de forma alguma o sentido chave maior de fantasma, ou seja, o de fantôme[15] – que está explícito e que se procura eludir, ou que nessa tentativa de apagamento permanece implícito ou subjacente na língua portuguesa. É nesse sentido que, indo mais além sobre algumas questões de tradução, Paulo Ronai, enfoca os aspectos conotativo e denotativo das palavras citando Eugene A. Nida, sublinhando: “A diferença entre a denotação de uma palavra e a sua conotação é muito significativa em tradução. Nem sempre o problema é saber o que uma palavra designa (a denotação), e sim como as pessoas reagem a ela (conotação)”.[16]
Então, apesar de aqui não se tratar apenas de conotação, vale lembrarmos que fantasma é um significante de forte peso¸ pelo seu sentido fundamental, por bordejar um desconhecido assustador, atemorizante, que evoca o morto, ou a morte – aspecto que não é o relevante no termo fantasia. Por outro lado, cabe ainda ressaltarmos que fantasma, em português, tem também o sentido de “coisa medonha, espantosa, ameaçadora, que nos importuna ou persegue”. Vamos encontrar este sentido, atualmente, nas falas populares, quando se diz “são meus fantasmas” em alusão a alguma fantasia que implica um sentido ameaçador; os temores fantasmáticos, inconscientes. Este é um sentido que não existia anteriormente em português; surgiu mais recentemente, possivelmente a partir da divulgação da psicanálise e do inconsciente.
Voltando então à opção por esse termo ‘fantasma’, que nos trás tantas dificuldades em nosso idioma, recordamos que Melman[17] chama-nos a atenção para a importância dos grandes textos que, mais que um ideal, viriam fazer consenso em nossa cultura. Ele evoca o texto de Homero, a Bíblia, com o antigo e o Novo Testamento, o texto de Marx e por fim o texto de Freud que tem sua importância para nós. Texto este que nos diz que há um saber inconsciente, que nos dá as diretrizes para o gozo. Gozo esse circunscrito e balizado pelo fantasma.
Por outro lado, tendo como alicerce o texto freudiano, éramos fisgados pela releitura que Lacan faz deste, ao retomar aspectos importantes, na busca de recolocar a psicanálise nos trilhos. E, assim sendo, urgia para nós marcar uma diferença face aos pós-freudianos, ou diante daqueles inseridos na IPA ou em outras instituições, ditas até ecléticas. Recordamos que naquela época não só em Paris, mas também no Brasil, algumas Instituições preteriam o ensino de Lacan, por vezes tentando divulgar sua teorização de forma bastante distorcida, até mesmo ao encarar a fantasia nos moldes kleinianos… Então a busca desse traço – pelo viés da leitura de Lacan – que para nós organizaria a leitura que fazemos de Freud – mais que um enamoramento pelo estrangeiro (de fora) indicaria a busca de uma identidade….
Então, ao fazer do fantasma um conceito pretendia-se não levar em conta esse sentido maior, mas este sentido Outro não cai, ele persiste e insiste, reclamando seus direitos de cidadania. Desse modo, ao buscar esse traço identificatório arrastamos junto com ele um problema outro: enquanto o significante fantasia faria apelo a um imaginário de devaneio, de sonhos, até mais light, ainda que apelando às idéias…. kleinianas, fantasma trás uma conotação de algo assombroso. Pretendia-se evitar cair numa teorização imaginária fantasística e caiu-se em outro. Seria isso reforçado pelos elementos imaginários da época? (deixo como hipótese)
Assim sendo, ao pensarmos nesse sentido outro que persiste, deslizamos do estrangeiro amado ao estranho assustador, e somos levados de volta, através de Freud ao texto Das Unheimlich, “O Estranho”, onde é contemplado predominantemente esse sentido que se procura eludir. Neste texto vamos observar o exaustivo trabalho de Freud na busca da origem desse termo, cujos sentidos vão se desdobrando, deslizando, reconstruindo. Freud retoma a definição de Schelling “Unheimlich é o nome de tudo que deveria ter permanecido… secreto e oculto, mas veio à luz”[18], o que leva Freud a concluir que trata-se sempre de algo reprimido que retorna. Então Heimlich seria uma palavra cujo significado se desenvolveria na direção da ambivalência, num vai e vem do estranho ao familiar e vice-versa, até que finalmente coincide com o seu oposto, unheimlich. [O que há de assustador que retorna, ou que surge aí como estranho? Seria o amor do Um, ou da casa perdida? A saudade de casa?]
Freud, conforme nos diz Melman, “por não ter à sua disposição a noção do Outro”, lida como pode com essas dificuldades. Assim, para explicar o fenômeno do estranho ele recorre à literatura fantástica, em particular aos Contos fantásticos de E.T.A. Hoffmann, (“o mestre incomparável do estranho na literatura” – Freud) O Homem de Areia bem como a O Elixir do diabo. Questiona por que o Homem de Areia aparece sempre como um perturbador do amor, e atribui ao pai temido de cujas mãos é esperada a castração.[19] Destaca que “tudo que surge como estranho satisfaria a condição de tocar aqueles resíduos de atividade mental animista dentro de nós e de dar-lhes expressão.”[20]
O estranho e a angústia
Por outro lado, Lacan vai recorrer a esse texto – Das Unheimlich – principalmente para trabalhar a questão da angústia. Assim, ao evocar o estrangeiro nessas figuras fantasmagóricas Lacan cinge um estrangeiro outro, o estrangeiro de cada um, pela dimensão do Outro, que funda a alteridade. No seminário A Angústia ele retoma os contos de Hoffmann – O Elixir… e O Homem de… mas, além desses ele dá ênfase especial ao Diabo Amoroso de Casotte, de cuja obra ele retira a questão fantasmática – Che vuoi?, chave para a angústia, ponto de partida para a inscrição significante. Evoca ainda, de Shakespeare, o ponto chave da questão fantasmática quando Hamlet encontra-se atordoado, sugado pelos ouvidos pela palavra do ghost, o fantôme de seu pai (já trabalhado no seminário sobre o desejo)
O que queremos ressaltar com isso? Aquilo que é, digamos, o ponto chave de nossa indagação aqui? É que essas figuras ameaçadoras, estranhas, trazidas por Freud em Das Unheimlich e por Lacan nos seminários citados, que bordejam a morte e tudo o que há de mais assustador, revelam um sentido que não cai, que perpassa nesse termo. Ou seja, começou-se a traduzir fantasia por fantasma e então no momento em que surge o fantôme, que seria corretamente fantasma, um sentido imaginário se sobrepõe ao termo lacaniano. Aí a confusão se instala, pois ambos os termos são encontrados nos textos, porém ambos são traduzidos por fantasma. Então, o sentido que se procura eliminar, este que seria angustiante ou apavorante do fantasma (fantôme) aparece nos textos de Lacan através de uma diversidade de figuras assustadoras: o ghost do pai de Hamlet, o diabo em Casotti, o homem de areia, aqui traduzidas corretamente por fantasmas.
É preciso observar que essas duas vertentes, aquela do enquadramento – da janela para o mundo – e aquela da angústia, estarão entrelaçadas e serão levadas em consideração no fantasma. Se o fantasma tem uma função lógica que faz nó, que religa e dá forma ao gozo face ao Outro, por outro lado torna-nos sempre passíveis de sofrer uma falta de resposta, que pode convocar o que é angustiante, o que parece desatar ou romper o nó – Che vuoi? Entretanto, por sua própria virtude, podemos sempre ser enviados à nova tessitura, celebrando mais uma vez o enquadramento da angústia.
Todavia, é preciso nos interrogar se, por causa da opção pelo termo fantasma, devido à conotação imaginária dessa palavra, não seríamos antes levados a dar mais importância à questão imaginária do trauma, às fantasmagorias imaginárias, que à questão do enquadramento, da janela para o mundo, ou mesmo à questão lógica – aquela que constitui o ponto chave trabalhado por Lacan em seu seminário de 66/67.