A glória da marca
05 février 2025

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Ana Maria MEDEIROS DA COSTA
Cartel franco-brésilien de psychanalyse

Preâmbulo 

 

​               Farei um preâmbulo para situar melhor as questões pelas quais transitarei. Em 2003, publiquei um pequeno livro que nomeei Tatuagem e marcas corporais, resultante de um trabalho com a adolescência. Foi escrito a partir duma pesquisa de pós-doc, num período que passei em Paris. Naquela época – comecei a pesquisa em 1998 – a busca por marcar o corpo não tinha a amplitude que tem hoje, mas já chamava a atenção o quanto essas buscas se disseminavam. Tinha presente pesquisas antropológicas que tratavam dos rituais tribais, em que marcar o corpo situava uma mudança de estado (como na passagem da infância à vida adulta, por exemplo), definindo um lugar social. Nada disso parecia estar em causa nas buscas contemporâneas por marcar o corpo, num laço social em que o ritual perdeu a força. Precisei então atualizar a pergunta para o âmbito individual: o que leva alguém a querer tatuar-se? Pergunta que obtinha respostas evasivas, o que me levou a pensar que poderiam situar-se como atos sem razão ou sentido definidos. Uma moda era pouco para defini-los. Não seguiam prescrições de lugares sociais, ou mesmo processos rituais indicando mudanças de estado, como no exemplo que mencionei antes. Comecei a pensar que sobrevinham como restos de alguma coisa, restos do que teria sido.

 

Não foi sem surpresa que, lendo sobre pesquisas históricas, descobri que marcar o corpo surgiu desde que uma forma de linguagem – ou seja, de laço social – se estabeleceu entre os falantes. Já estava desde os habitantes das cavernas, deixando traços reconhecíveis pelas pesquisas antropológicas. De lá, para cá, essa forma de expressão tomou diferentes destinos, de acordo com mudanças de costumes. No Ocidente, o monoteísmo proibiu seu uso, no entanto ele não desapareceu. Na Idade Média, por exemplo, era usado pelo poder da Igreja para marcar o herege, ou bem como forma de marca de segregação produzida nos proscritos pelos ideais sociais. Retornou como um valor de circulação social no Ocidente por meio dos marinheiros, e mesmo pelo costume de trazer habitantes do Novo Mundo para exibição nas cortes europeias, fazendo com que o fascínio pelo estrangeiro tomasse corpo e alguns componentes das cortes adotassem o costume.

 

​               Esse preâmbulo sumaríssimo tem a intenção de apresentar um costume que não tem explicação, mas que remete à condição de ser falante, produzindo um tratamento específico daquilo que está incluído em nossa estrutura de linguagem. Ou seja, pode-se pensar que há uma correlação entre os falantes produzirem objetos no mundo, e a condição de se situarem como um objeto entre outros. Interessa-me transpor uma proposta interpretativa que reduz a questão ao narcisismo, interpretação que me parece redutora e por vezes moralista, não dando conta de algo que insiste em todas as culturas e tempos. Hoje, assume uma expansão de uso que surpreende. Certamente precisa se considerar, em relação a isso, a visada que toma nossa forma de laço social, em que o consumo distancia a relação entre o objeto e um traço distintivo.

 

Meu trabalho percorre basicamente dois elementos que estão em causa no que insiste nos atos da busca da marca: de um lado, a produção de um traço que recorte um elemento que liga dentro e fora; de outro o campo da erótica, como ligado à questão da dor. Acrescento a estes, um tema que não é evidente, mas que tem importância na questão do traço: a produção de uma memória.

 

Considerando esse caminho, dividi meu trabalho em duas partes: na primeira, uma memória imemorial entre o amor e a pele; na segunda, a glória da marca.

 

Uma memória imemorial entre o amor e a pele

 

            O que nomeamos de memória? Quando faço a pergunta parece que começo em falso, porque a memória já está tão gasta de ser entendida, analisada, glorificada, menosprezada, mistificada que não valeria a pena ainda propô-la como enigma. E, no entanto, algo escapa no cerne do que é proposto como memória. Talvez sua própria condição de escorrer no tempo de uma ampulheta, em que os grãos da areia mantêm aquele espaço mínimo que os faz não se misturarem. Cada grão mantém sua unicidade escorrendo com outros, numa alegoria da passagem do tempo. Nessa alegoria, o que os liga? Poderia pensar-se na ampulheta como um continente que faz os grãos de areia estarem juntos num espaço, mas nada liga uns aos outros a não ser essa compressão de uma borda no escorrer de um tempo. Clarice Lispector nomeou o que seria um intervalo numa narrativa alusiva. Recorto uma passagem de A paixão segundo G.H. Antes, um pequeno comentário aos colegas que não leram a obra, principalmente na França: não vou tratar da obra de Clarice, tomo esse parágrafo como algo da ordem de um dizer, no sentido lacaniano. Ele faz alusão a uma epifania da personagem G.H., quando olha para fora e vê o desdobrar das civilizações sobre escombros umas das outras:

 

Vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e que é linha sub-reptícia. Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir – nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio. (p.98)

 

O intervalo é uma respiração chamada silêncio. Um intervalo entre sentir e sentir, entre o número um e o número dois, todos interstícios da matéria primordial: uma linha de mistério e fogo como respiração do mundo. Respiração. A matéria primordial ejetada ao mundo e a respiração fazendo viver. Um nascimento. No instante mesmo da vida, a morte vem junto, e a respiração é o que mantém unidos e disjuntos dois corpos. Clarice nomeia de silêncio essa disjunção, esse intervalo. O silêncio de um corpo que se vê em outro corpo, um fora de si, mas que é em si. Esse fora de si, essa matéria que traz todos os intervalos, todos os silêncios que precederam sua produção, mas que está ali, falando sem falar, dizendo sem dizer, pedindo sem pedir. Matéria de projeção de todos os silêncios precedentes, um grito cria seu intervalo e é nesse momento que se faz Outro corpo. Um desconhecido que cava o inexpressivo num grito sobre a sombra de um silêncio.

 

Não se pode definir o inexpressivo que vem junto com cada expressão. A paixão segundo G.H. não trata propriamente de um nascimento, mas, ao mesmo tempo, é uma expressão possível de um inexpressivo, em que enigma e memória fundam todos os nascimentos. A escrita realiza isso em seu próprio ato, tendo o olhar como veículo. G.H., desde um quarto (que ela nomeia de minarete), VÊ o início da criação, em que as civilizações se sucedem umas às outras, deixando rastros de realização e escombros. Numa narrativa de vertigem, as civilizações se erguem umas sobre outras, sem ligação, sem antes e depois. Um grão de areia ao lado de outros grãos de areia, mas sempre um silêncio como interstício.

 

O que dá existência ao silêncio é o grito, isso que ao mesmo tempo expande e limita o campo do sensível. Os interstícios de Clarice têm expressão enquanto criação de contrastes. No entanto, no campo do sensível encontramos um limite na diferenciação de contrastes, como é o caso no exemplo da dor. A dor pode não diferenciar extremos de quente ou frio, prazer ou desprazer. Assim, podemos tomar a dor como expressão de um interstício entre prazer e desprazer, que muitas vezes borra os limites que distinguem um do outro. Precisaria acrescentar-se a dor, no âmbito da leitura freudiana da diferenciação dentro/fora, como esse interstício que não é nem dentro nem fora. Poderia se pensar na dor, utilizando uma linguagem clariciana, como a expressão do inexpressivo.

 

Assim, o campo do sensível traz contrastes, mas não necessariamente distinções. O que distingue é a produção de semelhanças, e ali já estamos no âmbito de uma estrutura de linguagem. As semelhanças trazem em si o distinto e o indistinto, o que ao mesmo tempo separa e confunde. Walter Benjamin, numa construção alegórica, situa isso na produção dos sonhos, no qual os acontecimentos são “impenetravelmente semelhantes entre si”. Esse impenetrável das semelhanças é ao mesmo tempo índice e realização. Freud diria que o sonho apresenta (Darstellung) o desejo como realizado. O que se apresenta – mostra e torna presente – é da ordem do Isso como tendo um caráter indicial (sendo um índice). É nesse ponto que o sonho se abre à leitura, não sendo esgotável pelo campo da série significante – ou das representações, no dizer freudiano. Seu limite, segundo ele, é como um umbigo, o que, em termos alegóricos, poderia situá-lo como corte e fonte de toda criação.

 

Detenho-me no ponto do umbigo como uma cicatriz primeira que não faz memória. Essa ausência de memória parece dizer respeito a um enigma impossível de escrever, de como de um corpo se faz três, na medida em que um nascimento parece com essa descrição clariciana do interstício entre o número um e o número dois. É assim que talvez possamos considerar essa cicatriz primeira do umbigo como um ponto de foraclusão, de impossível inscrição, mas que – paradoxalmente – modela um destino de busca da marca. Um destino de busca da marca… um destino de busca da marca…

 

​Esse caminho me leva a uma proposição lacaniana de que o traço unário se marca primeiro como tatuagem. É uma proposição que não deixa de fazer questão, que parece conter em si mesma uma espécie de vaticínio, como uma frase ao mesmo tempo final – contendo uma verdade – e indeterminada, porque se precisa desdobrar seus elementos: a marca, o traço, a tatuagem. Mas, ainda por cima, da ordem de um “primeiro”: se marca primeiro como tatuagem. O “primeiro” indica inevitavelmente uma série, a série de outros traços que darão o estatuto de primeiro ao que estava encoberto por esse saber – S2 – que Lacan situou como o insabido do inconsciente. Uma marca/tatuagem que encobre aquilo que, de tão visível, permanece invisível. O traço unário como tatuagem, nesse sentido, vem recobrir ao lado, enviesado, de forma lateral, o que seria esse umbigo/cicatriz.

 

               Em janeiro de 1975, numa resposta a Marcel Ritter, a propósito do termo freudiano Unerkannt, Lacan menciona o umbigo da colocação freudiana, nomeando-o ao mesmo tempo como buraco e nó. Esse Unerkannt – impossível de reconhecer – é situado por Lacan equivalente ao Urverdrängt, o recalcado originário:

 

 

A relação desse Urverdrängt, desse recalcado originário… acredito que é isso que Freud está retomando em relação ao que foi traduzido de forma bastante literal como umbigo do sonho. É um buraco, é algo que é a fronteira da análise; obviamente tem algo a ver com o Real, um real perfeitamente nomeável, nomeável de uma maneira que é um fato puro; não é à toa que ele coloca em jogo a função do umbigo.

 

 

O “Unerkannt” é o impossível de reconhecer… É o sentido do “Un” no termo que em alemão designa o impossível, é o “Unmöglich” do que se trata, isso não pode ser dito nem escrito.

 

               Esse Un que não pode ser dito nem escrito é o que o faz propor o impossível como “não cessa de não se escrever”.

 

               Dizer que o traço unário se marca primeiro como tatuagem não implica na recíproca, de que a tatuagem seja marca do traço unário: esse “como tatuagem” coloca muito bem a questão. Por outro lado, tem algo em relação ao traço unário que diz respeito a esse impossível: é uma memória imemorial, porque impossível de reconhecer. Toda relação com esse imemorial é construída secundariamente, derivada das formas de linguagem que a circulação nos discursos veicula. Abordar a tatuagem implica em transitar por seu uso nos diferentes laços discursivos, em diferentes culturas. No entanto, a infinidade de sentidos individuais, desígnios sociais de usos, proibições, imposições, faz perder qualquer bússola para sua apresentação.

 

               Durante muito tempo, o interesse por buscar tatuar-se dizia respeito a produzir uma marca perene, uma marca que não se apaga. Esse interesse está dirigido a tornar visível – trazer ao campo do sensível – o que não se vê: essa marca primeira foracluída, que diz de alguma coisa do corpo de impossível inscrição. É um caminho que contém em si um paradoxo: a tentativa de singularização de uma marca que, por outro lado, só funciona numa circulação discursiva. Chama a atenção que essa forma de busca costuma produzir repetição, muitas vezes compulsão. No entanto, a relação ao Um parece ter se mantido, numa espécie de saber encoberto por meio de um dito inexplicável: o número de tatuagens não pode ser par, precisa ser ímpar.

 

A tatuagem guarda em si uma espécie de magia, como busca de apaziguamento de algo que não se fixa. Isso que não se fixa é a imagem do corpo, que padece de extravios miméticos nos movimentos da linguagem, bem como da passagem do tempo. O que não se fixa é a insistência numa escrita da versão fálica – o não cessa de se escrever – que mostra seu esgotamento sintomático, na insistência de capturar o Real na linguagem. A busca da marca, nesse sentido, parece trazer em si o paradoxo em que uma fundação se confunde com um apagamento, como repetindo um movimento da infância, quando a criança pergunta algo ao adulto e, no mesmo gesto, diz: “não precisa dizer, eu sei”. Assim, fundação e apagamento, criação e destruição estão no cerne do que Lacan propôs como base do funcionamento da linguagem, em que o “não” – um apagamento – inaugura a relação com um saber. Entre o amor e a pele parece designar algo dessa insistência, em que o amor ao Um, como suposto saber, trouxe o que diferentes culturas fundaram sobre a base de um sacrifício.

 

A glória da marca

 

            Retomo o recorte de uma passagem do seminário dos discursos, que serviu para convocar esta reunião:

 

…há mesmo assim algo de completamente radical, é a associação… no que está na base, na raiz da fantasia, dessa glória… da marca, da marca sobre a pele, de onde se inspira nessa fantasia isso que não é outra coisa senão que um sujeito que se identifica como sendo objeto de gozo.

 

Na colocação “objeto de gozo” precisa ser incluído o tema do objeto em Lacan, ou seja, a questão do objeto a. Essa proposição situa algo que fica à distância – não importa o quanto a insistência de repetir se produza. O que define a erótica da marca sobre a pele é o que Lacan situa no termo Mehrlust – o mais-gozar. Ou seja, o que ele define como entropia: o gozo resulta de uma perda de gozo. É ali que se introduz uma ambiguidade: a equivalência entre o gesto que marca o corpo, e o objeto de gozo. Gesto e marca são equivalentes, e nisso pode situar-se esse interstício interno/externo. O termo “equivalência” diz desse “entre”, dessa mínima distância inapreensível. Lacan situa a distinção entre registros como equivalência: R, S e I são equivalentes entre si. Essa equivalência, por outro lado, estabelece a divisão, no dizer de Lacan, “em que se distingue o narcisismo da relação com o objeto”. Assim, o que marca o corpo fica situado na ordem do gesto e não na ordem de um ato. A insistência na busca da marca situa esse instante de ambiguidade, essa glória em que a dor é uma resultante e que traz uma indefinição interno/externo. A dor é ponte, é realização do interstício como pleno. É nesse sentido, também, que a busca da marca não está completamente contida na referência narcísica.

 

            A glória da marca: uma espécie de júbilo. Seria comparável aos momentos de júbilo do infans? Quando, de uma solidão imposta, a criança experimenta júbilo ao lançar longe um carretel, fazendo-o retornar e enunciando seus primeiros balbucios de simbolização. Ou mesmo, o júbilo frente ao espelho transpondo um espaço entre corpos na captação de uma imagem. Entre o corpo sensível e a imagem há um precipício, um buraco, uma separação. Nessa experiência original do infans, de onde vem o júbilo? Nunca saberemos, porque o bebê ainda não fala. No entanto, o júbilo é a marca de uma satisfação única, um gozo raramente reencontrado, somente equivalente à paixão. E a paixão é quando o buraco é pleno, a paixão não tem espelho. O júbilo do bebê frente ao espelho pode ser o encontro da plenitude no buraco que a imagem vem suprir. Não somente na imagem enquanto representação. O júbilo do bebê pode ser o originário de um encontro, que mais tarde na vida pode se apresentar em outras experiências, como no êxtase místico, por exemplo. Pode ser encontrado no testemunho de Tereza de Ávila, em que ela diz que seu êxtase corresponde ao momento em que o vazio de seu corpo se torna o espelho de Cristo. Ou seja, diz de uma privação – um buraco – em causa nas experiências originárias, em que a imagem fica do lado da satisfação alucinatória, como já situou Freud.

 

O êxtase, assim como o júbilo, não é do campo da representação. O que está em causa ali não é somente a imagem como fazendo totalidade narcísica, separando e juntando interior e exterior. Lacan insere o espelho numa leitura do narcisismo, esse elemento não estava em Freud, pelo menos não como uma sustentação de estrutura. O texto freudiano fala de relações diretas: mãe, criança, pai. Lacan introduz um artefato – o espelho – mediando as relações. Poderia ser tomado como metáfora, no entanto se apoia numa experiência concreta: o bebê descobrindo a unificação de seu corpo no espelho. O tema do artefato me parece importante aqui. Lacan o introduz também quando vai falar dos objetos das pulsões no seminário sobre a angústia. Diferente de Freud, que toma o seio como objeto da pulsão oral, Lacan situa esse objeto no mamilo. Ou seja, nomeia de objeto da pulsão aquele recorte do corpo que pode ser substituído por um artefato, como no caso do mamilo sendo substituído pela mamadeira na pulsão oral. Nessa proposta, o suporte corporal do objeto a traz a condição de que ele seja um objeto cedível, ou seja, de que possa ser substituído por um objeto construído na relação ao discurso.

 

Assim, o espelho – enquanto um artefato – pode funcionar para o olhar como um objeto cedível, tal como os outros objetos corporais cedíveis das pulsões. Neste sentido, ocupa o espaço de uma transicionalidade, em que fica indeterminado qual o corpo que goza. Lacan retoma essa indeterminação quando faz referência à glória da marca: “Gozo de quem? Será aquele que porta o que chamei de glória da marca? É seguro que isto queira dizer gozo do Outro?” (p. 51). É nesse ponto que se estabelece a divisão, na afinidade da marca com o gozo do corpo.

 

            O indeterminado faz parte da gramática da fantasia, situado na análise freudiana da frase “bate-se numa criança”, ou “uma criança é batida”. Vemos repetir-se essa indeterminação na busca da marca, na maneira como se descreve o ato da tatuagem: “eu me tatuei”, ou, na frase interessante em francês “se faire faire tatuer”. Neles, um dos termos é apagado, o termo que diz da separação sujeito/outro, em que se situa essa equivalência descrita por Lacan.

 

            Tentando concluir, situo o caminho percorrido no que nomeei “a busca da marca” como a colocação em ato de um paradoxo, aquele da divisão no ponto em que se situa o parlêtre: ser falante e ter um corpo. A marca/cicatriz poderia ser, caso fosse efetivada, esse ponto inaugural em que se estabeleceria uma fundação. Mas, como em todo projeto de fixação de uma versão fálica, sua busca segue os mesmos desvios dos discursos em que está inserida, em que a produção de sintomas dá notícias na clínica.

 

O tema da memória parece diretamente relacionado à necessidade de produção do Um como traço diferencial, que permitiria a relação com uma contagem remetendo a esse originário imemorial. No entanto, como a proposição lacaniana do discurso analítico permite reconhecer, é num percurso de análise que o falo cessa de não se escrever, situando-se na contingência de um significante qualquer. Ou, como também propôs Lacan, que o simbólico pode ser extraído da versão fálica.

 

De toda essa elaboração resta a referência à letra, esse elemento que também está em causa no neologismo parlêtre. Não teria a busca da marca uma afinidade com a busca da produção da letra, enquanto esse elemento mínimo que fixaria um ponto de gozo? Uma letra/carta tantas vezes desviada, na insistência que acompanha seu destino. Aqui, volto ao que assinalei anteriormente: o amor ao Um como suposto saber, situado muitas vezes na base de um sacrifício. É num percurso de análise que se dá uma subversão dessa posição, na possibilidade de situar a letra/carta na produção de um novo amor, elemento que aproxima a psicanálise da literatura e das artes.