O desenho e a letra
29 octobre 2005

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FLEIG-BELTRÃO Conceição De Fatima,JOANA DAL PONT Izabel,KUHN MARTTA Margareth
International

 

Apresentação do tema

Conceição Beltrão Fleig [1] – Margareth Kuhn Martta [3]

Quando se menciona o desenho na clínica psicanalítica, de imediato associamos à clínica com crianças. Mas este não é incomum na clínica com o adulto. Então, por onde começar essa abordagem? Podemos partir de Freud nos seus casos clínicos. De forma mais específica encontramos desenhos em dois deles, no Hans e no Homem dos Lobos.

Em Hans nos interessou o desenho da girafa que foi traçado por seu pai durante uma de suas conversas. A este desenho, reproduzido nas publicações do caso e que o pai propunha levar para o Professor, Hans inseriu um risco, que denominou « o pipi da girafa ». Portanto, um desenho a quatro mãos. Podemos dizer que nesse desenho encontra-se um testemunho do desenrolar da elaboração das teorias sexuais do menino. Mas outro elemento significativo, que queremos destacar é a forma como Hans constrói a teoria a respeito do sexo de sua mãe; ou seja, amassa um pedaço de papel que fica, portanto, com dobras e diz ser uma girafa amassada – « estava amarrotada assim ». Nesse ponto e para estabelecer uma ligação entre os dois elementos abordados, o desenho e a superfície, podemos recorrer a Charles Melman que o precisa através da referência à decoração da sala na qual tinha lugar a jornada sobre O desenho como uma escritura:

« Há nesta sala um Cristo. O que é que sustenta essa maneira que há de dar, do objeto, somente esse envelope, essa superfície? É evidente que isso que nos fascina nestas superfícies, e que os pintores retomaram tantas vezes, são as pregas, certamente. É uma superfície com pregas. Então, evidentemente, o objeto pode estar atrás. Será que no limite, quando existe a superfície, ainda se tem necessidade do objeto? A questão que, evidentemente, fica para nós em litígio é: será que as pregas são cortes, rastros de cortes ou são simplesmente pregas? » [4]

Dando seqüência a esse ponto propomos estabelecer uma relação entre as dobras no papel amarrotado de Hans, e o discurso, por exemplo, nas formas: « quer dizer », « Há, isso que eu disse… », « a saber », « isto é ». Localizamos em ambas circunstâncias uma glosa, ou seja, uma dobradura, justamente quando no discurso há uma tentativa de repetir o que havia sido dito, se dá a produção de outra coisa. Lacan trabalha essa questão empregando o termo chiffonnage. Se por exemplo, temos um texto escrito em uma folha de papel e se a amassa, nessas rugas a palavra se transforma, umas ficam cortadas, algumas letras se sobressaem e outras desaparecem. O resultado final é diferente do texto na folha antes desta ter sido amassada. Em uma fita de Moebius, o esperado é que ao cortar se produza uma outra fita, mas idêntica. Entretanto, o que ocorre é a produção de outra coisa. O que leva, então, a supor que a dobra ou a glosa tem a ver com o corte, sem que tenha havido o processo de metáfora ou metonímia. No caso de Hans, através da dobra, inscreve-se o real sexual, o real do sexo da mãe, que pode estar por baixo da prega. E, na descontinuidade dos traços, representa uma representação na qual se localizam duas formas de falar da insuficiência do lugar paterno: a fobia do cavalo e o traço que inclui na girafa.

A esse respeito, na mesma jornada, Roland Chemama pergunta:

« O que dizer do surgimento da representação, das transformações, das descontinuidades, dos cortes que podem fazer com que haja representação? O que dizer do desenho da criança, não em sua significação, sua interpretação, mas no ato que o faz? « o que se diz, fica esquecido por trás do quê se ouve », escreve Lacan. Que se desenhe, também, fica sem dúvida bastante desapercebido por trás do que está desenhado no que se vê. » [5]

Após a análise da questão da superfície, no caso Hans, voltamo-nos para o caso clínico do Homem dos Lobos. Este faz um desenho quando relata o sonho e isto nos interessa em particular, pois encontramos na forma de tratamento que Freud deu a essa questão outro elemento, que propomos desenvolver a respeito da produção do desenho em uma análise, que no caso era a análise do infantil em um adulto. Daquilo que Serguei desenhou, Freud trabalhou o que não estava ali, pontuando que entre o relato do sonho e o desenho havia uma diferença de número. Aí Freud localiza o significante primordial dessa análise, a letra V. Mas como chegou até lá?

Para situar este ponto vamos retornar ao que Freud escreveu:

« Ele acrescentou um desenho da árvore com os lobos, que confirmava sua descrição. (…) Durante o tratamento, ele se dedicou com perseverança incansável à tarefa de vasculhar os sebos até encontrar o livro ilustrado da sua infância, reconhecendo o seu mau espírito numa ilustração… ». [6]

Serguei buscou incessantemente o desenho de um lobo que constava em um livro de contos de fadas com o qual sua irmã mais velha costumava assustá-lo. Mas Freud não se detém na via imaginária, ele vai pensar o sonho como uma escritura a ser decifrada, uma escritura do desejo inconsciente. Persegue o ponto descrito no sonho, no qual consta a relação de seis ou sete lobos, associados pelo paciente ao conto O lobo e os sete cabritinhos, apontando que no desenho foi o número 5 que se fez presente.

Freud acrescenta:

« Na ilustração do sonho o paciente mostra o número cinco, o que provavelmente corresponde à correção das associações referentes ao sonho, nas quais afirma: « Era noite »(…) como uma distorção de « eu estivera dormindo ». [7]

Quanto a esse aspecto convém retomar A interpretação dos Sonhos, onde Freud propõe que o número nunca deve ser negligenciado no exame do material onírico por ser o elemento mais abstrato que pode comparecer em um relato e que neste caso é o número 5, jamais mencionado, mas que constituía o número de lobos desenhados. Portanto ao isolar o número 5 Freud se encaminha para a seguinte leitura:

« A partir dos dez anos de idade esteve sujeito, por vezes, a crises de depressão, que costumavam sobrevir à tarde e atingiam o seu ponto culminante por volta das cinco horas » (…) cinco horas ou era a hora da febre mais alta ou da observação do coito ». [8]

Através da teia de associações, o número 5 encontra sua inscrição como um V (5 romano) ligado a um movimento de abertura e fechamento, tanto dos olhos « eu estivera dormindo » como de « uma mulher abrindo as pernas ». Então, os movimentos do corpo, os registros iniciais através da imagem, encontram uma representação psíquica através de uma letra: a letra V. Marc Darmon[9], comenta acerca da letra V -inclui também o W, de Wolf, ou seja, lobo, ao qual o paciente deve sua alcunha -, que Freud a localiza no mostrador do relógio que supostamente estaria marcando a hora da cena primitiva. E, como já foi referido, equivale ao movimento das pernas das moças, ao bater de asas da borboleta ou as asas arrancadas da vespa (Wespe), que o paciente pronuncia espe, homofônico a S.P. (Serguei Pankov).

Em face do exposto sugerimos a instigante proposição de Bergès:

« … mas me pergunto: de que outra forma posso diferenciar o que é visível, a não ser lendo-o? (…) São palavras que fazem a diferença, ou seja, fazem com que aquilo que é legível se torne visível, e que, conseqüentemente, isso tenha algum lugar nas relações entre a letra e o significante. » Ao que Balbo argumenta: « Então, quando desenha, a criança é capaz de situar atrás do desenho alguma coisa que lhe dá uma perspectiva (…) Bem, os desenhos são feitos, a imagem é feita para recalcar a letra. » [10]

A partir desses elementos brevemente apresentados, abrimos a discussão nessa sessão temática, não deixando de ressaltar as armadilhas que podem ser construídas ao se trabalhar com o desenho na clínica com crianças, e o risco da construção de uma clínica do imaginário. O próprio Freud não resistiu à tentação de um comentário sobre o que ele próprio vira no desenho do Homem dos Lobos ao dizer que « Acima de tudo, o que dá cor a essa visão é o fato de que os lobos do sonho eram, na realidade, cães pastores e, além disso, aparecem como tais no desenho ». [11]

Mas em nosso entender isso não é o fundamental da retomada desse ponto no caso do Homem dos Lobos. Tanto o sonho como o desenho, compostos por restos diurnos estão submetidos às leis do trabalho do sonho, entre elas, a consideração a figurabilidade. Freud não se detém nesta última, deixa cair a imagem indo para a leitura do desenho ou do sonho. O que menos interessa é o contexto estético; a imagem está aí para ser decifrada, ser lida. Ou como nos diz Lacan: o inconsciente é para ser lido. A respeito deste alerta, Balbo propõe que « o imaginário vem, assim, no material onírico em lugar de uma cifragem simbólica apropriada para dar conta do enigma do sexo, mas que falta ». [12]

Retomando, então: o sonho, cujo fenômeno predominante é o visual, Freud o compara com um sistema de escritura, e é nesta direção que pensamos o trabalho analítico no qual o desenho é empregado.

Dando seqüência a esta introdução trazemos 3 relatos clínicos.

I) Um menino em preto e branco

Conceição Beltrão Fleig

Trago um breve relato, de um início de tratamento que foi interrompido pela mudança da família para outro Estado. Não houve produção de desenho, no sentido gráfico, mas o corpo ocupava o lugar da folha de papel. Insiro-o neste estudo para pensar algumas questões daquilo que da demanda da mãe, desprendendo-se de um recorte de texto do imaginário social se estabelece como real em seu filho.

Refiro-me ao caso de um menino de 12 anos com diagnóstico de vitiligo e que me foi encaminhado pelo dermatologista. Foi a mãe quem tomou a decisão de marcar a consulta e através de suas palavras, assim trazia o caso: « em alguns períodos ele fica bem parelhinho, bem branquinho, mas quando fica nervosinho logo começa a ficar manchado, coitadinho, ele fica preto e branco ». Quanto ao pai, só o vejo uma vez, quando do início do tratamento. Ele estava na negação. Estava de acordo com o tratamento uma vez que o dermatologista indicara, mas principalmente porque era preciso fazer tudo o que estivesse ao alcance. Mas, se o seu filho era assim, para ele não tinha importância já que era seu filho. Por pelo menos três vezes durante uma entrevista reaparece a expressão « mas como ele é meu filho ».

Já o menino, sabedor do motivo de sua vinda, dizia que « às vezes some e às vezes aparece, fica menos ». Ou então: « A senhora viu que na semana passada eu estava mais branco? » A mãe lhe dizia, ou melhor, « lhe lembrava » o que deveria falar a cada vez. Como exemplo disso o menino descreve que os tios (irmãos da mãe) bateram no seu pai, prenderam-no contra a parede e o surraram. Quando lhe pergunto se ele tem alguma idéia sobre o que aconteceu, responde simplesmente: « porque ele é moreno ». Mas quando digo que não entendi o que quer dizer ser moreno, ele acrescenta que o pai é « brasileiro ». A mãe insistia para que o menino falasse disso, e ele o fazia. Na sala de espera, na saída, ainda perguntava se ele havia contado « aquilo » para a doutora. Essa mãe, então, se pretendia como a única capaz de dizer os significantes do filho, ela os dizia para que ele os dissesse, supondo que ele não pudesse fazê-lo independente dela.

Entre essas falas o menino mantinha o olhar fixo nas mãos e durante o silêncio um dos dedos indicadores percorria as bordas da despigmentação, mas sem encostar a pele. Fazia desenhos seguindo as fronteiras das descolorações e repetia que não tinha nada mais a dizer ou contar. Isso se dava uma vez esgotado o script materno.

A demanda da mãe era para que esse filho ficasse branco, portanto o inverso daquilo que o dermatologista considerava a cura, ou seja, que a pigmentação da pele voltasse ao seu normal. Mas a mãe pedia o tom ainda mais claro, da despigmentação cutânea; parelhinho. E o menino me pedia para testemunhar o seu processo de branqueamento através da pergunta afirmativa: « A senhora viu que na semana passada eu estava mais branco? »

Pelo imaginário social nas regiões de imigração européia do século 19 o termo « brasileiro » ou « moreno » tem uma conotação pejorativa. E nesse caso, o branqueamento como traço da alienação ao Real da demanda materna produzia o apagamento do pai. Entretanto, quando o menino desenhava com o dedo, marcava as bordas que distinguiam o « moreno » da marca de sua filiação ao pai – mas o que pode ser dito a respeito de filiação em semelhante estruturação? – e o « branquinho » da demanda materna. Eis aí um traçado peculiar, bem diferente dos desenhos produzidos em outros tratamentos e por outras crianças, cuja série forma uma cadeia significante. Aqui ele desenhava no corpo, mas sem deixar nenhuma marca, nenhum traço, nenhum risco. Tratava-se de um desenho invisível que seguia um traçado já construído.

Também considero importante pontuar a observação da mãe a respeito do « nervosinho ». Nesses momentos da manifestação de algo peculiar do filho, de movimento, de seu comparecimento através de palavrões, agitação e principalmente quando ficava brabo, o que sua mãe via era o « manchado », bicolor. Ele, então, não estava « parelhinho ».
Proponho, nesse momento, destacar no caso em questão, que o « moreno » ou o « brasileiro » se colocam como signo constituindo uma patologia do imaginário que se inscreve no real do corpo, do real do sexo(só era suportável se parelhinho).

Lacan, no Seminário 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, aborda a questão da holófrase, termo buscado da lingüística e que designa uma palavra-frase. Ou seja, que uma frase inteira se exprime através de uma só palavra longa. Propõe ainda que a holófrase nos permite situar as questões do efeito psicossomático na medida em que não há intervalo entre S1 e S2, ocorrendo que o primeiro par de significantes se solidifica, se homogeneíza, se holofraseia. A ausência desse corte impede a constituição do objeto, que então se daria nesse intervalo. Em conseqüência, impede o recalcamento e o desencadeamento do fantasma. A partir dessa questão da holófrase, há toda uma série de estudos de casos, inclusive, de crianças débeis e de psicoses, como é este que aqui trazemos. Então, com a aglutinação desse par de significantes não se produz um efeito de perda, mas a afânise do sujeito. « O sujeito está presente, mas vazio, ocorrendo um recobrimento do Real pela realidade », conforme escreve Vandermersch em « Le phenoméne psychosomatique a-t-il un sens? ».
Bergès e Balbo no seminário do ano 1999-2000, O Outro na criança, postulam que uma nominação holofrásica pode ser a fonte de significantes imaginarizados que os pais ficam remetendo à criança, e quando algo relativo a isto se produz no corpo, o corte entre S1 e S2 é abolido.

Isso então pode ser chamado de o Real do traumatismo. Dito de outra forma, um significante pode ao mesmo tempo ser imaginarizado e passar para o Real. Quer dizer, pela abolição do enodamento com o simbólico, passa imediatamente de um imaginário ao Real, injunção que encontramos freqüentemente na psicose, nesta ausência de corte.

Na articulação de uma cadeia significante, a letra é a única coisa que pode cair, mas a letra rejeitada e não recalcada está aí como prova. E esta letra que fica no real é identificada como o próprio objeto, ela não é sexualizada. Lacan chama a atenção para que as letras tinham nomes próprios além de apontar para a proximidade da letra com o suporte da identidade. Quando a letra se mantém ligada a uma seqüência significante fixa sua significação é enigmática para o sujeito, na medida em que os elementos literais não foram sexualisados pela referência ao pai.

II) O instante de ver

Izabel Joana Dal Pont

Ao estudarmos o tema, os desenhos realizados por analisandos retornaram como lembranças de fotos em um álbum. Esses recortes da análise de muitas crianças possibilitaram novos questionamentos, um outro olhar.

Escolhemos passagens da análise de uma menina de 7 anos para ilustrarmos algumas reflexões acerca do lugar das imagens e sua importância como via de acesso às associações verbais, a linguagem. Mencionamos imagens, porque foi através de um livro, de desenhos, de um álbum e de sonhos, que conseguiu falar de suas angústias, de seus medos, reescrevendo desse modo sua história.

T. chegou para tratamento porque apresentava comportamento agressivo e explosivo em casa. Na escola era apática e retraída, seguidamente tinha dor de cabeça e os pais eram chamados para buscá-la. Na primeira sessão ela coloca que gosta de ficar em casa assistindo à televisão, mas não de ir ao colégio, porque tem de ler e escrever. Refere esquecer sempre uma letra.

Ela também fala sobre seus medos e relata um sonho tido aos 3 anos: « eu era pequena e o lobo me comeu e morreu. Eu acordei e fui tomar água, pus água no rosto, aí eu vi que era um sonho, eu sonho mais com sonhos ruins ». Conta sobre um travesseirinho com bichinhos desenhados, que chama de nano, ganho da mãe quando bebê, mas depois que o lavaram não conseguiu mais dormir com ele. Após algumas sessões volta a falar do nano, diz brincar com ele, é seu amigo. Queria que ele fosse o seu único amigo e companheiro, mas logo em seguida se deprime e diz: « gostaria de um amigo de verdade ».

Ela passa a nos contar sobre um livro da mãe (de quadros de pintores), chamava-o « livro do diabo ». Após tê-lo olhado, começou a ter medo de encontrar o diabo na geladeira, no armário, na cama. Freqüentava uma escola de ginástica e, quando a professora saía da sala ela via o diabo com aquilo na mão (referência ao tridente), dizia que só as alunas o viam. Pelo medo de vê-lo novamente, desiste das aulas. Vem na sessão seguinte com esse livro, abre-o para mostrar o diabo, mas quando confronta a imagem diz não ser o que tinha visto, o de sua imaginação tinha olhos avermelhados, que assustavam. Mostra outras figuras onde apareciam vários esqueletos e, após falarmos das imagens, observa-os e diz: « não são vivos como eu pensava ».

Inicia a sessão seguinte colocando ter pensado sobre o que conversamos, percebeu que não era um diabo, mas um homem montado num cavalo, após não teve mais o medo. Passado um mês, traz novamente o livro e relata um sonho: « uma caveira matava um menino e vinha para me matar, mas eu peguei um pau como o do Bambam (personagem dos Flintstones) e acabei com ele, matei ele. Eu estava com meus pais, mas depois eu fui andar sozinha num barco. Hoje eu não queria acordar porque tive um sonho bom ». Segue referindo-se ao livro para falar dos esqueletos, de uma estória sobre a conquista da caveira pela mulher.

Na semana seguinte, ela nos fala acerca de sua história através de seu álbum de fotografias. Ela conta, através das fotos, passagens e vivências desde os dois anos de idade, aproximando-se fisicamente, movimento importante diante de sua tendência a isolar-se. Relata perceber que seu irmão tenta gozar dela, mas agora consegue entrar na brincadeira, faz da provocação um jogo.

T. parte para a construção de um grande painel, composto de várias folhas, denominado a praça. Nessa aparecem variadas cenas e situações, por exemplo, crianças brincando sozinhas ou com outras, mães levando bebês para passear, vendedores, animais, um diálogo entre um papagaio e uma mulher que, ao ser chamada de véia, responde com inúmeros desaforos. Enquanto íamos compondo a praça falava de seus conflitos em casa, de suas dificuldades, dos medos de vampiros e monstros, reconhecendo agora sua grande « rabugice », antes atribuída aos pais, ela diz: « sou uma Tarzanzinha ». Coloca que não gosta de viver, mas ao mesmo tempo seu movimento era o de se incluir, assim como os animais, nas cenas da praça, apagando as imagens que havia me solicitado que desenhasse. Os pesadelos desaparecem, segue com alguns medos. Os pais solicitam uma sessão e trazem que o tratamento está lhe causando os medos e, como a vêem melhor, no que consideravam o seu problema, interrompem o tratamento.

Esse breve recorte nos mostra como uma criança fala através de imagens. T. o fazia por desenhos, figuras de um livro, fotos de álbum, sonhos, numa clara referência à importância da figurabilidade como via de acesso à leitura do inconsciente como uma escritura em imagens. Ela, através de associações livres, falava de suas fantasias, de seus desejos, acedendo aos significantes de sua história que lhe possibilitavam constituir-se como sujeito.

Diante da ausência de um olhar, do lugar vazio deixado pelos pais, que pouco investiam nessa criança, T. buscava recobri-lo com o uso de seu nano, objeto transicional que não conseguia cumprir sua função. Assim como sua conduta agressiva e de oposição retornava negativamente, os pais se incomodavam e se afastavam.

As imagens lhe eram necessárias, porque dessa forma tentava acalmar a angústia do lugar vazio que não lhe era possível até então representar. Estas a levavam, como nos diz Lacan acerca da fobia, a buscar substituir o objeto da angústia – a face real do objeto a – por um significante que lhe causasse medo, o diabo, os monstros, o esqueleto, o vampiro. Num processo de antecipação, pela via do imaginário, acede ao simbólico, a um significante que faz ato, que produz efeito de sujeito.

Lacan, ao abordar o tempo lógico, nos fala desse movimento de asserção do eu, da construção do lugar do eu na « temporalidade historicizante da experiência da transferência » (1998, p.319). Enuncia a existência de três tempos na estruturação do sujeito. O primeiro tempo – o instante de ver, é o da enunciação sem sujeito. Ele contém « esta modulação de tempo onde se encontra a imagem, que é aquilo que aliena, que captura. […]. O instante é o brilho, é a fascinação. É o instantâneo fotográfico, onde alguma coisa se realiza na imagem » (COSTA, 1998, p.49). Ele é efêmero, não permanente. Nas imagens trazidas por T., como as do livro do diabo, aparecia esse movimento, onde havia primeiro a captura pela imagem, que a fascinava e ao mesmo tempo a paralisava, mas quando conseguia perceber o engano da aparência, algo novo emergia, ela passava a situar seus conflitos num outro plano, o da sua história.

É na passagem ao segundo tempo – o tempo de compreender, que algo se rompe, convocando à atividade, à saída do lugar passivo da contemplação. Esse tempo « constitui o trabalho historicizante da fala, não para estabelecer ou restabelecer a realidade dos acontecimentos vividos, mas para reinterpretar neles a verdade do desejo » (AREL, 1998, p.103). Podemos reconhecer esse tempo quando, por exemplo, ela resitua o lugar do nano, ela passa a falar acerca do que lhe faz falta: um amigo de verdade. Outro ponto a ser analisado é o da sua fobia, primeiro fica presa à imagem do diabo, mas quando esta passa a ser significante há um deslizamento para um outro significante, agora um homem montado num cavalo, referência ao lugar paterno que tenta inscrever.

Diante da insuficiência da metáfora paterna, T. busca uma via de estruturação que lhe possibilite uma nova posição com relação ao desejo do Outro. Ela se afasta da posição de estar referida à demanda de reconhecimento do Outro, para a de reconhecimento da sua posição desejante. É o terceiro tempo – o momento de concluir, um significante novo emerge operando um deslocamento subjetivo. Por ora T. é uma Tarzanzinha cheia de rabugices.

Referências Bibliográficas

AREL, Pierre. O tempo na análise. In: CHEMAMA, Roland (Org.) Dicionário de  psicanálise: Freud & Lacan. Salvador: Ágalma, 1998, v.2.

COSTA, Ana Maria Medeiros. A ficção de si mesmo: interpretação e ato em psicanálise. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1998.

LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

III) A construção da escrita a partir do Outro

Margareth Kuhn Martta

Pretendemos com este trabalho levantar algumas questões relativas à construção do processo de alfabetização, por meio do relato de um caso clínico. Voltamo-nos, particularmente, para este sintoma, dentre outros apresentados por Júlia, pois gostaríamos de desenvolver neste trabalho aquilo que diz respeito à relação existente entre a aquisição da escrita e o lugar que a criança ocupa no fantasma parental. No educar ocorre a transmissão de uma escritura, ou seja, é a transmissão de uma filiação simbólica efetivada pela inscrição de um significante que vai designar um sujeito e, posteriormente, pelo recalque deste primeiro significante e a conseqüente inscrição dos próximos, que ocorrerá a representação deste sujeito.

Júlia tem dificuldades na aprendizagem, não consegue se alfabetizar. Junto a esse sintoma, quando de sua vinda, demonstrava uma atitude hostil, negativista e despótica com o outro. Seguidamente, jogava-se no chão, largada como um objeto, solta, sem limites, sem bordas corporais. Propunha, quase sempre, ao outro que se encarregasse de fazer algo por si, seja desenhar, brincar, recolher seus pertences. Resistiu muito à idéia de desenhar; eventualmente pegava nas canetas e daí surgiam alguns riscos e rabiscos (desenho 1). Levin (1998) diz-nos que o garatujar é um ato que implica o Outro para lhe confirmar que há algo nesse garatujar. É necessário que a mãe nomeie esse traço para que ele se efetive como um traço unário que será recalcado dando lugar ao desenho figurativo que, posteriormente, ao recalcar-se dará lugar à letra e esta, por sua vez, à leitura. Segundo o mesmo autor, o movimento desordenado da mão da criança inscreve-se numa superfície. Esse ato implica um laço que alinhava e compõe o garatujar ao significante, que representa essa garatuja para outro significante, em uma série onde o sujeito se representa no campo do Outro. Assim, a criança encontrará a confirmação de seu traço como lugar de presença em que sua existência está posta em ato. Essa primeira escritura inscreve sua posição no discurso e a ligação do movimento corporal com a estrutura.

Para que uma criança aprenda a ler e escrever, além do processo cognitivo que implica etapas operatórias e o desenvolvimento neuromotor, faz-se necessária à articulação subjetiva; sem sujeito não há leitura nem escrita. Um sujeito vem ao mundo inserido num contexto onde o discurso sobre ele está, antes mesmo que ele nasça, sustentado no Outro, a linguagem. A psicanálise nos viabiliza dizer que o acesso à fala, assim como a passagem ao desenho e a escrita, são situadas em relação a este Outro.

Penso, então, que Júlia persistiu por muito tempo na fase da garatuja, porque ainda esperava do Outro um significante que lhe confirmasse o seu lugar, que marcasse as bordas do seu corpo. A questão da estrutura para onde aponta-nos Levin, diz de um momento da constituição psíquica; a partir dos sintomas de Júlia podemos questionar esse momento inaugural de relação com o Outro: etapa das primeiras marcas traumáticas, fixações provenientes da fase pré-edípica. Lacan nomeia esse momento de frustração dentro das relações de objeto, quando o agente é simbólico, o objeto é real, e a falta é imaginária. Falta essa reivindicada, repetidamente, por Júlia no seu desenho e discurso, pertinente ao domínio da reivindicação numa atitude de tentar restabelecer a plenitude: Eu tenho um pipi (desenho 2). O momento da frustração traz para a criança a possibilidade de construir a marca da presença/ausência desse agente materno (agente simbólico).

Para Júlia é impossível se deparar com a aprendizagem nesse momento, pois, para tal, é necessária a passagem à castração, é preciso que a letra caia e, anterior a isso, caia o olhar do Outro. Como Júlia pode deixar algo cair que não seja ela própria? Como se deparar com uma ausência onde uma presença não pode ainda ser constituída satisfatoriamente? Júlia reivindica insistentemente a presença, o olhar e uma inscrição vinda do Outro.

Nos desdobramentos do texto de Chemama (1996, p. 14), ele nos aponta no desenho para o « surgimento das representações, das transformações, das descontinuidades, dos cortes que podem fazer com que haja representação ». Para Lacan, o que se diz fica esquecido por trás do que se ouve. Acrescenta Chemama: « Que se desenhe, também, fica sem dúvida bastante desapercebido por trás do que está desenhado no que se vê. ». No final da fase da garatuja, os círculos começam a tomar formas: são corpos, rostos, olhos. Ele desenvolve a idéia de que nesse momento o Outro começa a ser representado no desenho através de um círculo traçado no interior de outro círculo. Podemos observar isso (desenho 3): o olho, muitas vezes, é a melhor forma para representar esse Outro, que a representação pode limitar. O Outro existindo passa a existir o olhar que possibilita à criança sua imagem especular, necessária para constituir a letra que só existe no olhar do Outro, montagem necessária para responder a questão do desejo: Che vuoi?

A partir da construção do trabalho de instalação de um simbólico, onde Júlia pudesse incluir-se no laço parental, no processo de filiação, fomos construindo histórias onde ela pudesse ser nomeada, inicialmente com dramatizações (brincadeiras de mamãe e bebê). Quando Júlia conseguiu falar sobre o lugar que ocupa para seus pais e deixou, desse modo, cair a bela imagem (desenho 4), começou a contar a sua história para que eu a escrevesse, então, surgem suas primeiras letras (desenho 5), no lugar do olhar, letras que precisarão ser recalcadas, pois dizem do elo que inscreve Júlia no laço parental. Ela é para seus pais um « et ». Somente a partir do recalque desse traço, que marca sua origem (OVO – desenho 5) é que a leitura poderá advir e, o significante poderá representar Júlia para outro significante.

Referências Bibliográficas

CHEMAMA, Roland.O ato de desenhar. In:TEIXEIRA, Ângela B. (Org.). O mundo a gente traça. Bahia, 1996. (Ágalma – coleção psicanálise de criança).

LACAN, Jacques. O Seminário 4. A relação de objeto. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.

LEVIN, Esteban. A garatuja como vestígio das letras. ESTILOS DA CLÍNICA. Revista sobre a infância com problema. USP. Instituto de Psicologia, ano III, n. 4, p. 121, 1° semestre de 1998.

[1] Membro da Association lacanienne internationale

[2] Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre

[3] Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre

[4] Charles Melman, « Jcomprenpas » em Le dessin comme d´une ecriture. Paris, Association freudienne internationale, 1990.

[5] Roland Chemama, « O ato de desenhar », em O mundo a gente traça, Salvador, Ágalma, 1991, p. 13-4

[6] Sigmund Freud, História de uma neurose infantil, Rio de Janeiro, Imago, 1969, v. XVII.

[7] Sigmund Freud, História de uma neurose infantil, op. cit.

[8] Idem.

[9] Marc Darmon, apud Roland Chemama et Bernard Vandermersch, Dictionaire de la psychanalyse, Paris, Larousse, 1998.

[10] J. Bergés e G.Balbo, Há um infantil da psicose? Porto Alegre, CMC, 2003, p.88 e seguintes

[11] Sigmund Freud, História de uma neurose infantil, op. cit.

[12] J. Bergés e G.Balbo, Há um infantil da psicose? op cit.